Sou um dos escritores mais desagradáveis que conheço. Dar notícia de morte aguda é parada federal. Estavam tensos feito gado no matadouro. Ainda não sabiam como é que contariam para a mãe do Alex que o Alex tinha sido moído a socos e pontapés pela polícia parnasiana. Tiro, até que ia, mas, espancamento, ninguém esperava uma merda como aquela. Podia ter sido um aneurisma que estourou feito um balão no meio da massa cinzenta. Podia ter sido um piano de cauda que pulou desesperançado do oitavo andar, caindo sobre o boy. Podia ter sido um raio curto e grosso lançado por um deus destituído do cargo, num dia de chuva, durante uma peladinha num campo de várzea. Muita gente morre de raio, de engasgamento, de susto; morre dormindo, trepando, esquiando, maquinando, escrevendo; morre por esses e por outros motivos bisonhos.
Alex e o amigo tinham ido até a vendinha do gueto comprar refrigerantes. Nada mais de cigarros e baseados. Desde que fora diagnosticado pelo dr. Strangelove como portador de um raríssimo câncer ósseo que corroía o esqueleto em poucas semanas, o intrépido Alex tinha meio que se entregado à esbórnia, assumindo um comportamento irresponsável, perdulário, plausível a quem sabia que em breve bateria as botas para ir ao encontro de Jesus. O fato era que o Alex não cria em mitos, messias, paraísos, recompensas, virgens e outros elementos alegóricos afins; logo, não tinha exatamente a certeza de quem encontraria do lado de lá. Quem sabe, minhocas a roer a madeira, ele dizia, como se a morte fosse brincadeira.
Até o fechamento desta edição ficcional que acontece todo santo dia, ainda não se sabia ao certo o que tinha sucedido, por que cargas d’água os milicos abordaram os garotos e lhes deitaram o malho sem dó nem piedade, como se os seus corpos escurinhos fossem feitos de pedra ou de matéria bruta similar para sustentar tamanha pancadaria. Parecia claro que a soldadesca do condado tinha cometido uma gafe, uma cagada, um beligerante abuso de autoridade. Quer dizer, teriam pulado o corguinho com cadeira-de-rodas e tudo.
Duro mesmo era contar para a mãe do Alex que ele não tinha sucumbido pelo câncer. Todos faziam contas de ele morrer em suaves prestações. Podia ter sido um apêndice supurado que supurou de desgosto pela humanidade. Podia ter sido uma bola perdida que um zagueiro caneludo chutou para o rumo que o nariz apontava e que acabou acertando a cachola do pobre coitado. Não riam. Este é mais um daqueles casos de vida e de morte. Coincidências aconteciam. A maioria delas, trágicas, tristes e taludas. Como ter nascido pobre, lascado e cruzar pela joaninha da polícia parnasiana numa noite quente de verão, quando dá na gente uma sede dos diabos, aquela vontade incontrolável de tomar uma bebida gelada que, do ponto de vista nutricional, não serve para nada, senão para proporcionar um prazer efêmero às papilas gustativas.
Depois de apanharem como se fossem sacos de areia numa academia para aminoácidos trogloditas, a dupla retornou para a casa do amigo do Alex sem ter degustado sequer uma Fueda Fola. Por causa da doença oncótica, o mancebo Alex tinha ficado mais combalido, mais triste e mais desacorçoado do que seu o parceiro de surra. Quando entraram no puxadinho com aquela aparência repugnante de quem tinha saído direto da trama de “Laranja Mecânica”, do cineasta Stanley Kubrick, a mãe do amigo do Alex perguntou em que tipo de enrascada eles tinham se metido, se aquilo era coisa dos novos patriotas extremamente pentecostais. O Alex, que mantinha um olhar perdido, aéreo, abilolado, pediu um copo de água e licença para usar um instantinho o banheiro.
Podia ter sido uma picada de cobra na pica de quem urinava numa moita de capim guiné. Podia ter sido um choque anafilático por comer o pão que o diabo amassou. Podia ter sido a mão trêmula de um cirurgião com ressaca-de-uísque que cutucou com uma enxada a artéria horta, por engano, sem intenção, nem dolo, desencadeando uma sangria incontornável que fazia parte do rol de fatalidades possíveis a quem rasga um bucho sob o juramento de Hipócrates. Podia ter sido um colapso durante o sono de quem dormia que nem passarinho.
Como o rapazote demorasse a voltar, a mulher e o filho acorreram até o banheiro e encontraram-no estatelado no chão sobre uma rutilante poça de coágulos que ele mesmo tinha acabado de vomitar. Podia ter sido um suicídio, um rato com pulgas, uma pandemia oriunda da bunda, um ato final de desencanto; todo mundo pensa que sabe o que se passa na cabeça de um ser humano quando ela descobre que a morte já vem, mesmo sendo um jovem, uma criatura vivaz e ávida pelos prazeres mais ordinários e simplórios da vida, como fazer sexo em pé, ficar com a coxa do frango na hora do almoço em família e tomar uma Fueda Fola gelada, trincando, a última do deserto.
Podia ter sido uma gripezinha, só uma gripezinha presidencial de quem possuía um passado de canalha. Podia ter sido um osso vital fraturado por descuido das mãos pesadas de um quiropraxista. Em determinadas circunstâncias, os ossos de um sujeito ficavam bambos. O azar do Alex pode ter sido justamente este: possuir ossos fracos num território macabro dominado pela injustiça e pela desigualdade social; um lugar remoto, medonho, surreal — se não fosse real —, uma plaga miserável onde Deus mesmo, quando fosse vir, que viesse armado, conforme profetizara Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas.