Como tem sido frequente, Chico Buarque apareceu este ano sem avisar com um livro novo, “Anos de Chumbo e Outros Contos”. É mais uma obra para incomodar e trazer o olhar perplexo do autor para as coisas do mundo e do Brasil. Não há refresco para leitores e leitoras nas oito histórias que viram de cabeça para baixo o presente do país, incluindo o tema da pandemia. Tudo isso na forma buarqueana de escrever prosa, já conhecida desde o romance “Estorvo” — que está com nova edição comemorativa de 30 anos.
Perplexidade é o termo central, dado pelo próprio Chico, para entender sua visão estética e política nos últimos anos e décadas. Numa entrevista de 2004, ele explicou o abandono do tom engajado que fez sua fama e a adoção da forma incômoda de narrar: “O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus receios diante desse quadro cada vez mais assustador. Como não se vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo conformismo, ou mesmo a um cinismo”.
O “quadro cada vez mais assustador” foi percebido pelo crítico Roberto Schwarz, num dos ensaios mais reveladores sobre literatura contemporânea brasileira. O grande intérprete de Machado de Assis escreveu o texto “Sopro novo” para a revista “Veja”, em 1991, e alertou que nascia com “Estorvo” uma escrita com “engenho” e “mão leve”. Mais essencial ainda é que finalmente um escritor tirava as consequências das reviravoltas do presente, podendo o país de então estar em um processo de desmanche social.
“Note-se que a tônica do romance [Estorvo] não está no antagonismo, mas na fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias sociais — estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência? —, o que não deixa de assinalar um momento nacional. Ainda assim, não se entende o nivelamento [de classes sociais] sem considerar as oposições que ele desmancha”, disse Schwarz, nos anos de Collor, que prometia mudar o país com o discurso da moralidade e da modernização.
Lógica do favor
Salvo engano, as menções a Machado de Assis e Schwarz são fundamentais para entrar na leitura de “Anos de Chumbo e Outros Contos”. O livro abre com o conto extraordinário “Meu tio”, narrado pelo olhar de uma adolescente cujos pais empobreceram e estão no Rio de Janeiro de 2020 e 2021. Há o benfeitor da família, na figura do tio mais velho. Estamos assim de volta ao mundo do “favor” e do “paternalismo” dos primeiros romances machadianos “A Mão e a Luva”, “Helena” e “Iaiá Garcia”.
A grande sacada de Chico Buarque é reescrever aquele universo do “favor” que permitia aos pobres brasileiros do século 19 arrancar benefícios dos “senhores” para sobreviver. É como se as personagens femininas do primeiro Machado de Assis reaparecessem, de repente, no Rio de Janeiro atual. Mas o “favor” executado pela narradora de “Meu tio” sustenta os sonhos da família às custas da violência mais brutal possível. No trecho central, ela e o tio passeiam pela cidade em carros de luxo e param numa praia.
“Quando saí do mar ele disse que sentiu uma vontade de comer o meu rabinho”, diz a narradora, surpreendendo o leitor. A vontade do tio será atendida pela sobrinha, numa exibição crescente de brutalidade e violências simbólicas. Surgem indícios de que o velho tio também é integrante de milícia. Tudo isso na escrita perfeita de Chico Buarque, que vai expondo as consequências do que veio a ser o Brasil moderno. Não há mais brecha de certa convivência social por meio de favores. Restou, isso sim, o desmanche.
O fim do “favor” aparece também no conto “Os primos de Campos”. O narrador é um menino que vive com a mãe e o irmão mais velho. Este tem sonhos de virar de jogador de futebol. O pai foi embora sem deixar explicações. O elo com a história familiar são os parentes enigmáticos da cidade de Campos. Chico Buarque vai mergulhando nas imagens da vida popular, como fez tantas vezes em canções (o casal de “Valsinha”, por exemplo). Porém, o momento não é mais o de “Pedro Pedreiro”, esperando o trem chegar.
O que vai surgindo aos poucos é uma mistura brasileira dos subúrbios cariocas: milícias, religiosos, policiais ambíguos e até um grupo de jovens que espanca negros na rua. Nessa geleia geral, o narrador de “Os primos de Campos” vai descobrindo que também é um negro, sendo alvo de todo tipo de achincalhe. Com uma narrativa em tom memorialístico, Chico expõe o Brasil que perdeu sua forma. Assim como no romance “Leite Derramado”, tanto faz se a pessoa trabalha ou sobrevive de pequenos trambiques.
Anos quentes
A situação muda quase nada, e se muda é para pior, quando se olha o “andar de cima” ou o mundo dos ricos. O conto “Passaporte” traz a história da grande estrela da cultura que não encontra na fila do embarque seu documento de viagem para o exterior. Começa então uma trama que envolve um casal de passageiros. O protagonista desconfia de que eles sumiram com o seu passaporte. Metaforicamente, os personagens passam a matar numa situação banal. O problema se resolve, e o conto termina de maneira sinistra.
“O grande artista desejou uma boa estada ao companheiro de viagem, que respondeu com o isqueiro na mão: da próxima vez eu taco fogo”, diz o narrador do conto, sem especificar se o fogo será colocado no passaporte ou no próprio artista. O mesmo desconforto dos ricos aparece em “Sítio”, a história de uma atriz e um escritor que se refugiam no campo durante a pandemia de Covid. Eles convivem com um estranho caseiro numa região onde corpos humanos aparecem, da nada, boiando no riacho do sítio.
O conto que encerra o livro traz o título “Anos de chumbo”, que remete ao período do regime militar e, também, à expressão surgida na Itália. Chico Buarque conheceu nos anos 1970 os “anni di piombo”, quando os italianos entraram num conflito interno que não parecia ter fim. Lá foi seu refúgio para ter um sossego e ficar livre das perseguições do governo brasileiro. Foram os anos quentes: a direita italiana explodia estações de trem, e a esquerda matava o primeiro-ministro do país.
O Brasil vive “anos quentes” na atualidade? Parece ser a sugestão de Chico Buarque, a exemplo do que cantou na recente música “Caravanas” sobre o Rio: “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. No conto “Anos de chumbo”, o leitor acompanha o olhar de um menino filho de militar que faz o “trabalho sujo” em 1971. A mãe dele mantém um caso amoroso com o chefe do marido, também militar. No final, o menino decide resolver a situação da forma mais assustadora.
Ao ler o livro de contos de Chico, o leitor pode perguntar se é isto mesmo que virou o Brasil. Indagação semelhante que surge em romances lançados nos últimos meses como “Solução de Dois Estados”, de Michel Laub, e “De Cada Quinhentos uma Alma”, de Ana Paula Maia. A ficção brasileira contemporânea está tirando, enfim, as consequências devidas da realidade, em alto nível estético. Trata-se de uma novidade muito bem-vinda, ainda que seja desconfortável e inquietante para os leitores e leitoras.