Em Huntington, na Virginia Ocidental, Jan Rader, vice-chefe da Brigada de Incêndio do Corpo de Bombeiros local, chega para socorrer uma mulher de 23 anos, mas já não há nada a ser feito. Menos de um minuto depois, uma nova ocorrência: um rapaz é encontrado inconsciente no banheiro de casa. O começo de “Heroína(s)” já dá uma ideia do que está por vir pelos próximos 39 minutos, um tempo curto, mas que se desenrolam sobre uma questão fundamental para a sociedade contemporânea, especialmente numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos.
Entre um e outro caso, a mesma realidade. As taxas de mortalidade por abuso de opioides em todo o país continuam alarmantes, tanto nas grandes cidades como nos distritos eminentemente rurais. O fenômeno já é caracterizado por autoridades dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças como epidemia, chegando a atingir 115 cidadãos por dia. Uma pesquisa recém-publicada pela autarquia registrou um acréscimo de 30% nas abordagens de emergência por overdoses em todos os estados da América entre 2016 e 2017, ano em que o documentário foi lançado. Diante de tamanho desafio, qual seria o jeito adequado a fim de se fazer frente ao problema?
Uma das alternativas decerto passa pela informação. Elaine McMillion Sheldon, vencedora do Peabody Award, escancara a chaga provocada pelo consumo de heroína em Huntington, onde o número de overdoses supera em dez vezes a média nacional. Sheldon apresenta um trabalho de cunho científico, elencando possíveis fatores capazes de explicar a triste façanha do condado — uma população composta majoritariamente por operários que executam trabalho extenuante e veem na droga um escape rápido e satisfatório para o cansaço, como também para as lesões em decorrência da profissão, nas palavras da própria oficial Rader —, mas prefere se concentrar em iniciativas concretas, já realizada há algum tempo com larga margem de sucesso. Além de Rader, que se dedica dias a fio a responder a súplicas por ajuda, valendo-se da polêmica naloxona para ressuscitar viciados muitas vezes já sem os indícios vitais, essa história dispõe de mais duas heroínas que, ao contrário do alucinógeno, resgatam vidas devastadas pelo desespero e pela falta de perspectivas.
A juíza Patricia Keller, por sua vez, preside o tribunal de drogas de Huntington, projeto que visa a desestimular o emprego da heroína, inclusive por viciados contumazes, Keller é uma entusiasta da política do não-encarceramento de dependentes químicos, que devem antes de mais nada, se submeter a rigoroso tratamento — contribuindo assim para desinchar as penitenciárias americanas, um universo paralelo que reúne mais de dois milhões de pessoas. Ao longo das sequências em que a magistrada discorre sobre seu ofício, resta claro que sua atividade é, sem dúvida, a mais árdua dentre as três. Por envolver indivíduos em contato com sistema prisional, muitos em circunstâncias reiteradas, o trabalho da juíza parece, ao cabo de uma análise mais detida, como o de enxugar gelo. “Heroína(s)” tem esse grande mérito; em momento algum, se vai assistir a qualquer tentativa de condescendência com o uso de drogas, e Keller é uma aplicadora do direito tarimbada, cuja sagacidade em distinguir quem está disposto a se emendar e aqueles que imaginam poder ludibriá-la fica evidente no curta de Sheldon. Fecha a trinca Necia Freeman, missionária de uma congregação protestante que ataca a questão pelo lado moral. A atuação de Freeman transcende doar sacos de lanche, os brown bags, e itens de higiene pessoal às prostitutas de Huntington, que em muitas ocasiões vendem seus corpos por um pico, uma seringa contendo cinco ou seis gramas de heroína. Percorrendo toda a cidade — sem quase nunca descer do carro —, ela se aproxima dessas mulheres, ouve suas lamúrias, suas falsas glórias, recebe suas ligações a cobrar realizadas de dentro das cadeias de toda a Virgínia Ocidental, ganha a confiança delas e, em tudo correndo bem, as persuade a deixar as ruas definitivamente (uma vez que são o lado mais fraco, as únicas que vão para o xadrez, ao contrário do que acontece com seus clientes), e frequentar a assembleia, num ímpeto superior por querer verdadeiramente mudar de vida.
Embora não se aprofunde sobre o tema, a discussão acerca da administração de naloxona para pacientes em estágio de intoxicação aguda por opioides é retomado depois da apresentação de Necia Freeman no enredo. Jan Rader aborda com naturalidade e segurança a necessidade do Estado não interromper a aquisição do sedativo, ainda que uma parcela maciça dos contribuintes esteja farta de manter vivos o que consideram a escória de Huntington, parasitas que oneram a receita do condado, não dão nada em troca e, pior, julgam-se no direito de fazê-lo. Com a autoridade de quem já salvou milhares de vidas ao longo de quarenta anos de carreira — primeiro como paramédica e enfermeira, posteriormente como agente dos Bombeiros —, Rader desmonta o silogismo com facilidade, enfatizando a quem dá tanto valor ao vil metal que a sobrevivência dessas pessoas é fulcral para que a cidade não abra falência. Na sequência, é mostrada a cerimônia em que Jan Rader é nomeada a primeira mulher a chefiar a Brigada de Incêndio do Corpo de Bombeiros de Huntington, a primeira da história da Virgínia Ocidental.
As personagens do filme de Elaine McMillion Sheldon não têm nada de heroínas, e isso é o que fascina nelas. “Heroína(s)” mostra três mulheres como outras quaisquer — Angela, Coretta, Eleanor —, mas que enxergam mais do que os outros e põem a mão na massa, só fazendo o que lhes cabe. Esses são seus superpoderes.