O mais belo filme dos últimos dez anos está no catálogo do Amazon Prime Video

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Richard Linklater se notabilizou por arrostar o tempo, e vencê-lo. “Antes do Amanhecer” (1995), romance que abre a trilogia sobre as idas e vindas de um casal cujo relacionamento nunca engrena — seguido por “Antes do Pôr do Sol” (2004) e “Antes da Meia-Noite” (2013) — já evidenciava a intenção do diretor quanto a empreender algo grandioso, sempre tendo por fixação o passar dos anos. Essa vontade de se provar mesmo um representante da arte, atividade humana que supera o registro cronológico por excelência, foi o estímulo que lhe faltava para botar a mão na massa outra vez.

Boyhood: Da Infância à Juventude” joga na cara do público a magia do cinema, que torna possível acompanhar a metamorfose de um garoto de 6 anos num homem feito em menos de três horas. Essa mandraca cinematográfica de Linklater até que não custou muito dinheiro — foram empenhados para o orçamento US$ 4 milhões, que se multiplicaram por 15 —, mas demandou muito trabalho, equipe aplicada e diligente e 12 anos, mais precisamente 4.200 dias.

Ellar Coltrane é um dos grandes responsáveis pelo sucesso de “Boyhood”. O protagonista sempre soube muito bem a verdadeira odisseia que em se transformaria sua vida — para o bem e para o mal — se aceitasse o desafio de gravar mais de um mês por ano até que o diretor chegasse à conclusão de que o material que tinha era, afinal, o bastante. Encarnar uma versão de Ulisses, personagem central da obra máxima de Homero (928 a.C-898 a.C), o mais célebre poeta épico da Grécia Antiga, teria suas muitas implicações na vida prática de um menino de Austin, no estado americano do Texas. O período em que Linkater precisasse dele quereria dizer adeus às brincadeiras com os amigos, nada de dormir até mais tarde, e mesmo ter de cabular algumas aulas na escola, isso para começar. À medida que crescia, Coltrane foi tomando pé da enorme incumbência que lhe havia dado o destino, mas vira também a dádiva inestimável de que poderia lhe servir a experiência.

Excetuando-se a forma revolucionária, nada no trabalho de Linkater é fundamentalmente novo. Há uma pletora de outros filmes, novelas de televisão e livros que retratam de maneira muito mais pungente as desventuras de pessoas ligadas por vínculos afetivos e consanguíneos ao longo dos anos. Brigas de casal, divórcio, o consequente afastamento de pais e filhos, as tentativas de reconciliação, a leviandade de adolescentes que desrespeitam a tudo e a todos de modo sistemático são assuntos já abraçados por produções a exemplo de “Fanny e Alexander” (1982) e “Cenas de um Casamento” (1974), do sueco Ingmar Bergman (1918-2007), mestre dos dramas de família; “Éramos Seis” (1994), de Nilton Travesso; e mais um épico à Homero, “Anna Kariênina” (1877), do romancista russo Liev Tolstói (1828-1910), decerto a obra definitiva acerca do tema, que já abre com a frase quebra-peito que todos conhecemos. No que diz respeito a “Boyhood”, o mérito de Richard Linklater é fazer justamente como cada um dos criadores que o antecederam e dar a seu filme aquilo que o faz tão especial, mesmo tratando das coisas mais banais — e mais importantes — da existência. E nada melhor que se valer da natureza de valorização estética do cinema, uma manifestação artística assumidamente vaidosa, para tanto.

O Mason de Coltrane vai atravessando o tempo sem que a audiência seja devidamente informada e essa é mais uma das belezas do roteiro. Deparar-se com Ethan Hawke e Patricia Arquette, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por sua Olivia, encarando o desafio de se mostrar suscetíveis ao avançar da vida como qualquer um, empresta a quem assiste uma espécie de consolo. Quanto a Ellar Coltrane, o desabrochar do menino num homem ainda incipiente, sujeito às incontáveis reviravoltas por que passam os adultos — seus pais, inclusive —, é um legado inestimável do cinema à humanidade.

A duração do filme pode ser um empecilho a se apreciar uma história tão rica com a devida calma. Contudo, repleto de detalhes saborosos que aludem aos signos da cultura pop que então vigiam, bem como a trilha impecável, a empreitada de entrar nesse túnel do tempo sem olhar para trás é uma vivência sem par. O tempo passa, e o que merece ser lembrado perpassa o tempo.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.