É muito difícil de acreditar, mas “A Travessia” (2015) é mesmo inspirado por uma história real. Como já narrara “O Equilibrista” (2009), documentário de James Marsh vencedor do Oscar de 2010, o acrobata francês Philippe Petit, de fato, foi capaz de atravessar o inexpugnável vão que ligava as Torres Gêmeas, a Norte e a Sul, num longínquo 7 de agosto de 1974.
Com o filme, o diretor Robert Zemeckis ratifica a tendência iniciada com “O Náufrago” (2000) quanto a se debruçar sobre anti-heróis corajosos, workaholics assumidos, que se veem tomados por uma ideia, um propósito que se torna sua razão de viver. Na produção estrelada por Tom Hanks, muitos tons acima do previsível e quase sempre genial, como é o caso, a ambição de Chuck Noland era “apenas” sobreviver depois de despencar do azul numa ilha do Pacífico quando o Airbus A300 em que viajava sofre uma pane. “A Travessia” faz questão de se equilibrar na corda bamba, pendendo ora para o tédio da realidade, ao mostrar a preparação interminável de Petit quanto a realizar a maior aspiração de sua vida, ora para a fantasia ela mesma, ao levar à tela a empreitada do andarilho das nuvens, faltando pouco mais de meia hora para o desfecho melancólico.
Essa vacilação na narrativa talvez tenha sido o grande trunfo de Zemeckis no enredo. No introito, que sabe a um improviso construído com esmero, Joseph Gordon-Levitt se dirige ao espectador do ápice da Estátua da Liberdade, em Manhattan, com as Torres ao fundo num fim de tarde de sol. A partir de então, o público fica ciente de que a experiência pela qual irá passar tem exatamente essa meta, inseri-lo, ao longo de mais de duas horas, no espírito delirantemente sonhador de Petit, como num desenho animado, com direito a parceiros também intrépidos que passam a integrar sua turma e, claro, um par romântico, Annie Allix, que Charlotte Le Bon incorpora com tocante doçura — mesmo que sua personagem protagonize uma reviravolta que não interfere no andamento do roteiro, mas deixa translúcido o senso de realidade do longa. Ben Kingsley, sob a forma do treinador gaulês Papa Rudy, veterano dos picadeiros que transmite a Petit seus ensinamentos e lhe confidencia segredos profissionais de suma importância — como o uso do cavalete de três pinos —, dá um providencial toque de classe à história, numa participação afetiva e carismática.
À medida que “A Travessia” avança, Gordon-Levitt torna-se mais e mais necessário a fim de dar os arremates de que o argumento de Zemeckis necessita. Seu Philippe Petit, apesar do sotaque artificialmente carregado, se investe da aura de showman que dele se espera; convicto de seu papel messiânico de artista, o de, se preciso, se permitir imolar desabando de mais de quatrocentos metros de altura, se espatifando contra o implacável concreto da realidade — o que, felizmente, não acontece —, o equilibrista segue firme até ver que atingiu seu objetivo. Aliás, ele vai além: não contente em atravessar o World Trade Center de um espigão ao outro, Petit arma uma falseta à dupla de policiais que o espera no terraço de uma das torres, resguardados por uma legião de agentes no térreo e no ar. Ousado como os só os bons artistas conseguem ser.
As escolhas estéticas de Robert Zemeckis, que privilegia tomadas aéreas — cuidadosamente pensadas, mormente quando se avizinha o encerramento do filme, nunca são gratuitas. A questão visual é preponderante, mas a história em si, por se revestir de tanta força, é o ponto mais alto dessa travessia.