Filme ganhador do Oscar, e considerado a melhor animação da história do cinema, está na Netflix Divulgação / Studio Ghibli

Filme ganhador do Oscar, e considerado a melhor animação da história do cinema, está na Netflix

Definir um filme sobre as descobertas da infância como encantador, sobretudo quando se trata de uma animação, pode soar ou redundante ou apressado, uma vez que o universo da criança se caracteriza pela magia, pelo sonho, mas também pelo confronto com a realidade.

Em “A Viagem de Chihiro”, do animador japonês Hayao Miyazaki, o espectador é capaz de observar esses dois aspectos muito bem-marcados, amalgamando-se entre si ao sabor da necessidade da história. Lançado em 2001, mas liberado para o circuito comercial fora do Japão apenas dois anos depois, o filme é uma genuína obra de arte que mescla os desenhos artesanais de Miyazaki — milhares, quadro a quadro — à interferência dos recursos tecnológicos disponíveis à época, jurássicos se comparados a tudo o que se encontra no mercado hoje, duas décadas mais tarde.

Muitos críticos atribuíam toda a sorte de defeitos ao trabalho do diretor e seu estúdio, o Ghibli, famoso em todo o mundo, numa tentativa irracional de comparar as produções de Miyazaki aos arrasa-quarteirões da Disney e da Pixar, esta incorporada pela primeira em 2012. Empresas menores como a do mestre nipônico foram se tornando mais e mais marginalizadas, vendo-se forçadas a condescender aqui e ali com as ditas tendências do que as gigantes entendem por público. Veio à luz muita porcaria, inclusive de realizadores antes tidos como geniais justamente pelo caráter inovador de seus enredos, nunca se sabendo muito bem onde começava o clamor da pasteurização artística, ditada por melindres econômicos, e em que medida restava intocada a mão do autor. Hayao Miyazaki conseguiu manter-se imaculado nessa guerra lamosa de ego e dinheiro contra lirismo e autenticidade, compondo em “A Viagem de Chihiro” resultado ainda mais sublime do que se assiste em “Princesa Mononoke” (1997), ambos alegorias sobre as dificuldades de se viver sob determinadas condições, quando só se pode dispor de si mesmo durante a maior parte do tempo.

As narrativas tanto do filme de 1997 como de “A Viagem de Chihiro” se constituem maciçamente dos clássicos das aventuras de heróis perdidos, tendo de se haver com circunstâncias hostis envolvendo monstros, tipos asquerosos e desonestos enquanto não encontram lugar no mundo, e dos coming-of-age, as tramas sobre o processo de amadurecimento do personagem central, não menos fornidas de desventuras e reviravoltas. Infere-se que Miyazaki tomou por inspiração para seu trabalho monumentos da literatura do patrimônio comum a toda a humanidade, como “Odisseia”, do poeta épico grego Homero (928 a.C-898 a.C), e “Alice no País das Maravilhas”, do escritor britânico Lewis Carroll (1832-1898), mas soube como poucos imprimir sua própria assinatura e apresentar uma história para denominar mesmo como de sua lavra.

A viagem a que se refere o título começa com a exposição do egocentrismo da protagonista, que aos 10 anos, pensa, como quase todas as outras crianças da mesma idade, que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo, no que se assemelha um tanto à personagem de Carroll, embora muito menos doce, talvez dotada de muito mais personalidade, condição que, decerto, se relaciona ao fato de ser a filha única de um casal abastado. A garota vira uma fera ao saber que terá de se mudar com os pais e abandonar seus amigos, substitutos dos irmãos que não tem, encerrando a infância de modo precoce e traumático. Os três dão início a essa longa viagem, mas Chihiro nota que alguma coisa dera errado. Seu pai certamente se perdera e conduzira a família para a entrada de um imenso túnel, guardado por uma estátua. Malgrado a situação se apresente o seu tanto insólita, os pais de Chihiro entram, levando a menina consigo. Depois de algum tempo de caminhada, chegam a um vilarejo aparentemente abandonado, embora haja um restaurante em cujo balcão estão servidos vários pratos recém-preparados. Enquanto os pais se fartam, a protagonista sai num passeio e conhece Haku, que lhe recomenda deixar o povoado o quanto antes. Chihiro fica impressionada com a veemência do menino e volta correndo, mas seus pais já não estão lá — pelo menos não da forma como os deixara.

A partir do momento em que se acha abandonada ao próprio destino, incerto, torpe, sombrio, ao qual ela fora aliciada pelos pais que deveriam resguardá-la, só resta a Chihiro tentar adaptar-se à sua nova vida e sobreviver, sem se cansar da procura por um jeito de ter seus pais — e sua história — de volta. Esse ponto do enredo prioriza com mais ênfase a trama homérica, em que a protagonista torna-se um ser humano forçado a partilhar do mesmo espaço com seres metafísicos, um balneário fantasmagórico no qual deuses superiores e os espíritos malignos se reúnem, democraticamente, a fim de aliviar o peso de suas respectivas eternidades. Zeniba, a yubaba, a sacerdotisa dona da casa de banhos, administra seu negócio de maneira draconiana, ainda que igualmente se revele na natureza de uma simpática anciã, que toma conta de Boh, um bebê pantagruélico que lhe garante a complementação de sua fortuna. Chihiro passa a trabalhar no estabelecimento, a fim de garantir abrigo e comida, mas também intentando amolecer o coração da bruxa, a fim de que a liberte e faça seus pais voltarem ao que eram. Para tanto, conta com a ajuda de Haku, um espectro materializado sob a constituição de um garoto pouco mais velho que ela, e Kamaji, um híbrido de homem e aranha, seu chefe imediato.

Como se nota, “A Viagem de Chihiro” é uma cornucópia de eventos ao longo de mais de duas horas, demandando alguma concentração do espectador, que se conseguir atentar para certos detalhes da história, é recompensado com valiosas lições. O componente humano é tão vívido no roteiro que a fantasia até fica relegada a um segundo plano. Os conceitos de filme de autor, obra de arte, obra-prima, tão gastos e empregados de modo indiscriminado, estão solidamente fundamentados aqui, intercambiáveis, mas também substituíveis pelo de narrativa poética que fomenta o onírico. Conforme o filme avança, Chihiro já bem próxima de sua redenção, a beleza gráfica do filme se acentua, com tomadas aéreas realçando o contraste entre o firmamento e o oceano, iluminado por um sol de primavera. Tudo milimetricamente pensado para deslumbrar.

Oscar de Melhor Filme de Animação de 2013, “A Viagem de Chihiro” torna-se uma senhora de 20 longos anos — muitos dos quais passados sob um ostracismo injusto e cruel, por causa da perversa tecnologia e do público que ela seduz —, mas que, ainda assim, é capaz de despertar o entusiasmo apaixonado de outros realizadores de animação, como os chineses Xuan Liang e Chun Zhang de “Big Fish e Begônia” (2018), livremente inspirado na veterana. Para quem não aguenta a profundidade da arte oriental e ativa o acelerador ou, ainda pior, aciona a legenda para o português, um aviso: vai perder um grande filme. “A Viagem de Chihiro” deve ser apreciado com toda a parcimônia, de preferência em várias ocasiões ao longo do ano, em doses homeopáticas no decorrer da vida. Mais um par de décadas para esse clássico do (bom) anime.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.