A breve vida de Roberto Bolaño (1953-2003) rendeu um arquivo literário de impressionar e alimentar os leitores e as leitoras pelo mundo. Após sua morte aos 50 anos de idade, a família do autor desengavetou escritos de um armário que parece não ter fim, dada a quantidade de obras. Neste ano, o público brasileiro pode conhecer o lado poeta, com a edição da coletânea “A Universidade Desconhecida”, lançada postumamente em 2007. Se a face do prosador assombra, o lado poético derruba o queixo de todos.
Penso no Bolaño poeta de maneira semelhante ao Jorge Luís Borges (1899-1986) dos versos. A ficção dos dois escritores foi tão imensa, em termos de qualidade, que não é possível terem recebido ainda o dom da poesia. Contos borgianos ou romances bolanianos já seriam mais do que suficientes para colocá-los no panteão cultural de qualquer país — sim eles estão acima de fenômenos meramente literários. As estrofes de Borges buscam como ninguém, por exemplo, o enigma da cegueira em “Um cego” (1975):
“Não sei qual é o rosto que me mira/Quando miro o rosto no espelho/Não sei que velho espreita em seu reflexo/Com silenciosa e já cansada ira./Lento em minha sombra, com a mão exploro/Meus invisíveis traços. Um lampejo/Me toca. Teu cabelo entrevejo,/Se ora de cinza ou ainda de ouro, ignoro.”
No caso de Bolaño, é difícil escolher um só poema do livro. Alguns deles parecem anotações perfeitas para outros escritos, ou seja, tem a cara de um exercício para obras futuras. Há versos memorialísticos para o filho Lautaro, em quase espelhos borgianos: “Tem dias em que vejo em seu rosto/o rosto de meu pai, que, segundo dizem,/era parecido com seu pai/O olhar de León Bolaño aparece em seus/olhos entrecerrados/principalmente quando saímos para um passeio/e as pessoas o cumprimentam com gestos cordiais”.
Em outros momentos, Bolaño faz meditações sobre o próprio ato de escrever, como em “Ressureição”: “A poesia entra num sonho/como um mergulhador num lago./A poesia, mais corajosa que ninguém,/entra e cai/a prumo/num lago infinito como o Loch Ness/ou turvo e infausto como o lago Balatón”. O mergulho num lago é uma forma de fugir da violência na superfície terrestre, principalmente na letra de um escritor que mudou de país em país, numa busca infinita por refúgios e exílios.
Escritor andarilho
A vida de Roberto Bolaño foi um constante movimento para sobreviver à violência inerente do país natal, o Chile, e seu continente, as Américas. Como o personagem de seu conto mais famoso “O olho Silva”, do livro “Putas Assassinas” (2001), ele sempre pareceu estar à procura de rotas de fuga. Está nesse escrito curto uma síntese ou uma poética do que vai se expandir depois, num tipo de big-bang permanente, nos romances “Amuleto” (1999) e o magistral “2666” (2004).
“Veja como são as coisas: Maurício Silva, vulgo o Olho, sempre tentou escapar da violência, mesmo com o risco de ser considerado covarde, mas da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinquenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende”, diz o narrador do conto, em alusão à própria vida de Bolaño, que fugiu do Chile com o golpe de Pinochet e vagou pelo México e pela Espanha.
Com tantas andanças, Roberto acabou um desconhecido de seus compatriotas. Ninguém é mesmo um profeta em seu país. Os chilenos levaram um susto em 2003. Morrera o escritor Roberto Bolaño, mas ninguém mais o conhecia. Pensaram que se tratava do ator mexicano de nome parecido, chamado Roberto Bolaños. Não se deram conta de que morria o maior autor contemporâneo da América Latina e pensaram que o falecido era o intérprete de Chesperito, Chavez ou Chapolim da televisão.
Bolaño já não se considerava um chileno e preferia ser visto apenas como um latino-americano. A residência final foi a região de Barcelona, onde viria a morrer por conta de um câncer fulminante. Após a morte precoce, a obra de Bolaño virou um acontecimento nos Estados Unidos, sobretudo a gigantesco romance póstumo “2666”. A cantora Patti Smith tornou-se uma divulgadora contumaz do autor chileno. Acho que ela vê em Roberto um escritor como espécie de roqueiro de garagem, cru, incisivo e urgente.
Quase todos os seus livros saíram no Brasil nos últimos anos, culminando com essa catedral de poemas em “A Universidade Desconhecida”. Já existe até um grupo de leitores e leitoras especialistas por aqui, como atesta o livro “Toda a Orfandade do Mundo — escritos sobre Roberto Bolaño” (2016), organizado por Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro. Sem dúvida, o autor chileno virou com a devida proporção um fenômeno atual semelhante ao de Gabriel García Márquez na década de 1960.
Escombros sul-americanos
Para quem desconhece o lago profundo de Bolaño, o mergulho inicial pode ser o livro de contos “Putas Assassinas”. O passo seguinte, sugiro eu, são os romances “Estrela Distante” (1996) e “Noturno do Chile” (2000). Ambos têm uma escrita impecável, uma mistura de erudição com aspectos da barbárie do mundo autoritário. Histórias de um continente construído a partir da violência da colonização e que imaginou ser possível a modernização em cima de escombros históricos.
Em “Estrela Distante”, Bolaño escreve as memórias de um poeta do interior do sul do Chile, por volta de 1971 e 1972. Ele faz parte de um grupo de pessoas que frequentam uma oficina para escritores. Lá, conhece o personagem Alberto Ruiz-Tagle, que assume o nome de Carlos Wieder para escrever famosos poemas com a fumaça de avião de acrobacias. O livro é a tentativa de capturar algo dessa figura fantasmática que se tornou mais inapreensível, sobretudo ao começar pelos serviços prestados à ditadura de Pinochet.
“Noturno do Chile” traz o personagem inacreditável Sebastián Urrutia Lacroix. Ele é um padre católico e membro da soturna Opus Dei que dá aulas de marxismo para ninguém menos que o presidente Augusto Pinochet. O poder necessita de um véu filosófico para existir. Esses personagens existiram ou não? Pouco importa, na verdade. No final, o livro se torna uma descrição de torturas de pessoas, com imagens e situações bem verossímeis.
Nunca é fácil saber se as figuras criadas por Bolaño existiram ou não – principalmente a listagem de poetas de diversos países. Aliás, as listas de nomes são vertiginosas, tal qual daqueles personagens inventados por Borges em seus contos.
O livro “Literatura Nazi na América”, por exemplo, é uma obra-prima da invenção de biografias. Bolaño imaginou dezenas de escritores e escritoras que defenderam ideias reacionárias e favoráveis aos poderes autoritários no continente. É uma enciclopédia fictícia e infame. Em um dos verbetes, o leitor brasileiro reconhece a história de Rubem Fonseca — ele carregou em silêncio as histórias de seu passado obscuro e colaboracionista das pessoas que derrubaram João Goulart em 1964.
Outro livro também desconcertante é “Os Detetives Selvagens” (1998). No romance, os personagens Ulisses e Arturo investigam o sumiço de uma poeta mexicana no começo do século 20. Eles juntam diários, colhem depoimentos e reconstroem a história de uma geração de latino-americanos entre os anos de 1975 e 1995. E mais interessante: Bolaño introduz no livro sua ideia genial da existência de um “realismo visceral”, feito pelos poetas visceralistas. O leitor vê a explosão de quaisquer limites pela ficção.
Ler Bolaño é uma forma de escapar da violência do presente, indo para além da realidade banal. Pode-se pensar no dito famoso de Walter Benjamin: todo documento da cultura é um monumento da barbárie. É bem possível que a chamada civilização se construa por meio de atos bárbaros e deixe uma montanha de ruínas pelo caminho. Mas, com os romances, contos e poemas de Roberto, nos distanciamos da realidade para enxergá-la melhor. É a verdadeira vacina para atravessar tempos difíceis.