Sofrência, gordofobia e outras esquisitices do ser humano

Sofrência, gordofobia e outras esquisitices do ser humano

Quando estava sendo alfabetizado num colégio de freiras, era perseguido pelos corredores, banheiros e pátios pelo fantasma de uma freira morta no século passado e por uma meninota gorducha cujo nome não faço ideia. Cismaram comigo. Em especial, a garota. Não sei bem como explicar. Pode ser que perseguisse também os outros meninos. Ou que não perseguisse ninguém. Talvez fosse apenas uma criança estabanada que quisesse brincar. Sei lá. Eu tinha aquilo como um drama exclusivo, pessoal e intrasferível. Era pequeno demais para entender a dinâmica entre perseguidos e perseguidores.

Só sei que o meu drama era a gorduchinha. Minha mãe incumbiu o meu irmão mais velho de ficar de olho em mim, de ficar de olho na garota, de não deixar que ela tomasse o meu lanche ou que judiasse de mim. Não sei tomou. Não sei se judiou. Não me recordo de nenhuma das duas coisas. Eu era só um pirralho borra-botas que ainda urinava nas calças aos 5 anos de idade. Não tenho certeza se o mano velho tomava conta de mim do jeito que mamãe tinha pedido. Eu não tomaria. Eu me largaria à própria sorte e iria brincar com as outras crianças. Seres humanos são animais estranhos e eu não fugia à regra.

Certo dia, a mãe da menina apareceu, ao pior estilo. Não sei se as escolas de hoje ainda fazem isso, mas, naquele tempo, as professoras colocavam a criançada para desacelerar o ritmo e tirar um cochilo após o lanche, em esteiras de palha esparramadas num salão à meia luz com musiquinha suave tocando de fundo. Foi nesse contexto de relax que a mulher surgiu. Lembro-me claramente da dita-cuja arrastar a filha pelo braço, aos berros, e surrá-la com um tamanco de madeira na frente de todo mundo. Ninguém apartou a besta-fera. Não me senti vingado com o castigo. Aliás, fiquei chocado, a chorar de remorso. De alguma forma, por causa dos meus constantes reclames, eu seria um dos responsáveis pela pisa homérica que a menina tomou. A pobrezinha nunca mais apareceu na escola. Para o meu sossego. Ou desassossego. Sei lá.

Gordofobia. As pessoas não se cansam dos neologismos. Aprendi, recentemente, que gordofobia significa preconceito, aversão ou o ato de humilhar pessoas obesas. Parece mais uma modalidade de bullying, que é outra palavra que não existia nos meus tempos de menino. Mesmo assim, a gente bulingava. E como. Mas, nenhum adulto fazia absolutamente nada para nos enquadrar, para coibir aquela crueldade. A saúde mental das crianças parecia uma condição relegada a segundo plano ou a plano nenhum. Continuo péssimo em matemática, em relações interpessoais, mas, posso concluir, com sombras de dúvidas, por a + b, noves-fora-nada, que fui, quem sabe, uma espécie de protótipo da gordofobia dos primórdios dos anos 1970. Não sentia aversão, nem raiva pela menininha gorduchinha de quem lhes falei. Era um pânico injustificado. Não sei como explicar. Talvez, a garota até gostasse de mim, quisesse estar por perto. Quem sabe, demonstrasse afeto à sua maneira, de uma forma que eu não depreendia. Pode ter sido um tremendo mal-entendido. Vai saber. Não vou destrinchar situações passadas em sessões de psicoterapia. Nem me venham com isso.

Nos últimos dias, o debate sobre a gordofobia voltou com força à tona, por causa da trágica morte da cantora Marília Mendonça, a Rainha da Sofrência, no auge dos seus 26 anos. Uma lástima. A morte abrupta de jovens é sempre uma condição aterradora a testar o juízo e a fé da gente. No meu caso, só o juízo. Houve uma comoção generalizada, até mesmo de gente que parecia não ter mais coração e que não conhecia uma canção sequer da moça. Eu, por exemplo. Se ainda possuo um coração? É óbvio que sim. Com caminhos tortuosos, feito as coronárias, mas, possuo um, sim, podem crer.

Música sertaneja nunca foi a minha praia. Não é que não goste desse gênero musical. Eu sinto raiva. Calma lá. Estou brincando. Estou apenas brincando. Permitam-me um chiste durante o processo criativo. Mas, sofrência não é mesmo o meu forte. O meu forte é ficar pensando demais em praticamente tudo, o que não deixa de ser uma enorme fraqueza e, por que não dizer, uma sofrência desnecessária. Comentou-se — veladamente ou não — que, justo agora que a cantora tinha emagrecido pra caramba, acontecia de perder a vida no auge da fama, da juventude, da beleza e da loucura que é ganhar cuecas-de-dinheiro no show business. Não compreendo o que o peso corporal do indivíduo tem a ver com talento, carisma e qualidade vocal, mas, a vida em sociedade tem dessas coisas. As aparências importam, enganam, e muita gente se anula ou se esgana por causa delas.

A morte prematura da Marília Mendonça, que eu nunca coloquei para ouvir numa vitrola, ou melhor, que eu nunca baixei no streaming para ouvir, conduziu-me a outras reflexões sobre preconceito e intolerância, em todas as suas nuanças, fossem elas culturais, políticas, religiosas e sexuais. Muita gente por quem cruzei nos últimos dias comentou que tinha ficado desconsolada e triste com o desaparecimento da cantora. “Era como se fosse alguém da minha família, sabe como é…”. Eu sabia. Fiquei condoído com o sofrimento dos fãs. Como eu já disse, nunca fui chegado à música sertaneja. Nem nem às letras, nem às melodias, nem à estética dos cantores. Notem que, volta e meia, ainda me pego apegado às aparências. Fiquei matutando se isso seria uma espécie de preconceito ou simples questão de gosto pessoal. Espero que a segunda alternativa seja a resposta correta. Seria decepcionante descobrir-me, aos 56 anos de idade, um sujeito obtuso, arrogante e preconceituoso. Seria ridículo. Algo do tipo fugir de medo de uma pessoa que só queria me dar um abraço. E nada mais.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.