Trinta e sete anos depois, “Duna” volta a causar polêmica. A história de ficção científica da série de Frank Herbert (1920-1986), publicada entre 1965 e 1985, logo um cult também no cinema, é hoje motivo de uma celeuma tola. Dirigida pelo talentoso — e hermético — David Lynch, que já havia apresentado trabalhos de gênio em “Eraserhead” (1977) e “O Homem Elefante” (1980), a alegoria sobre um mundo paralelo, só acessível mediante a administração das especiarias, substâncias que ampliam a percepção e fazem quem as toma viajar para outras dimensões sem sair do lugar, remete, por óbvio, à hegemonia das drogas no cotidiano da humanidade, mas não só. O filme de Lynch chega a ser profético ao insinuar a ascensão de déspotas que lançariam o mundo numa era de escuridão — curiosamente, um dos vilões de “Duna” é quase um homônimo de um dos maiores tiranos da história da humanidade, Saddam Hussein (1937-2006).
A decadência do duque Shaddam IV, vivido por José Ferrer (1912-1992), em 10191 d.C. se compara à do ditador saudita caído em desgraça, com a agravante de não se ter muito mais o que salvar no que sobra da Terra, que na obra de Herbert, Lynch e do diretor franco-canadense Denis Villeneuve — um dos diretores mais refinados da história recente do cinema — transforma-se em Arrakis, um planeta de atmosfera vermelha que lembra Marte, cuja única riqueza são as especiarias, diligentemente guardadas por vermes titânicos que viram feras ao menor barulho. Desde há muito que a população de Arrakis é subjugada por bárbaros que extraem todo o quinhão que podem desses recursos, sem que nunca herói nenhum se levante contra eles. Até que surge Paul Atreides, de Kyle MacLachlan, filho de Shaddam IV, que se atribui o papel de messias de Arrakis e se insurge contra os déspotas que usurpam seu povo, os fremen.
Passadas quase quatro décadas, o “Duna” de David Lynch — malgrado toda a maledicência de críticos desonestos e estúpidos que não atentam para a evidência de que a indústria e mesmo o público mudaram, além de não se poder comparar os recursos tecnológicos empregados em 1984 e os usados na leitura de Villeneuve — mantém a aura de épico, em que pese sua interpretação visceralmente particular da narrativa de Herbert. Sem nenhum demérito ao trabalho do franco-canadense, Lynch vai mais fundo em cada personagem, se dispondo a realizar a construção dos tipos um por um, fundamentando-se em suas idiossincrasias. Não é pouco num mundo, já àquela época, viciado no imediatismo do visual, que se constituiu uma verdadeira praga com a disseminação dos videoclipes, que já vinham ganhando espaço nos anos 1970 e permaneceram soberanos no vasto cenário da cultura pop até meados da década seguinte.
Tanto num caso como no outro, o ponto alto em “Duna” é a exploração do aspecto mais mórbido do enredo, o que Lynch faz como ninguém. Ao discorrer sobre a porção aberrante da natureza humana, em “Eraserhead” mais fortemente que em “O Homem Elefante”, e igualmente na história protagonizada por MacLachlan, o diretor enaltece sua personalidade autoral, a exemplo de como apresenta o barão Vladimir Harkonnen de Kenneth McMillan (1932-1989), um balofo de fisionomia asquerosa, mas capaz de flutuar — o único com tal privilégio na trama —, e apaixonado pelo discípulo Feyd-Rautha, personagem de Sting.
Atravessando a aridez de cem desertos perdidos na bruma do tempo, o “Duna” de David Lynch resiste, apesar das incontroláveis transformações, do mundo, do cinema, do homem, da vida. Certamente, o próprio David Lynch também mudou o seu tanto de lá para cá e sabe reconhecer os defeitos de seu filme. Que bom seria se todos mudassem.