Poder-se-ia dizer que “7 Prisioneiros” (2021) é um filme sobre o capitalismo malvado que explora trabalhadores sem eira nem beira, quase nenhuma instrução e que vão, aos poucos, entendendo a parte que lhes cabe no latifúndio da vida. Poder-se-ia dizer isso, caso se quisesse ignorar todo o resto e ficar numa análise rasteira.
Contudo, o novo trabalho do diretor brasileiro Alexandre Moratto, estrelado por Christian Malheiros e Rodrigo Santoro, se vale de um argumento ainda vivo na história do Brasil a fim de levantar as questões fundamentais do gênero humano. Mateus, personagem de Malheiros, cooptado no interior de São Paulo para trabalhar na capital, logo se depara com uma realidade muito diferente da que imaginou quando deixou a casa simples em que vivia com a mãe e as duas irmãs. Continua sem dinheiro, mas agora sem o apoio da família, dormindo num catre imundo, num alojamento não menos insalubre, sem banho, sem comida, sem dignidade. Sem nada.
Mateus é o típico anti-herói, que não demora a perceber no que consiste o jogo em que fora lançado à sua revelia e do qual resolve participar, numa tentativa de deixar as coisas menos insuportáveis, para si e para os outros três cativos que dividem com ele o espaço exíguo em que dorme. Mateus, Isaque (Lucas Oranmian), Ezequiel (Vitor Julian) e Samuel (Bruno Rocha) se investem de uma aura mítica, como se fossem os próprios cavaleiros do Apocalipse, num tour de force contra o mal supremo, encarnado em Luiz Carlos, o Luca, personagem de Rodrigo Santoro — o eterno galã das telenovelas do Brasil, que faz um esforço danado para convencer no papel do sujeito asqueroso que comanda o ferro-velho em que os quatro garotos passam a dar expediente… e não convence.
A despeito de Santoro — volto a ele mais tarde —, “7 Prisioneiros” tem falhas consideráveis, a começar do título. Não perca a conta: Mateus, Isaque, Ezequiel e Samuel, quatro. De onde os produtores Fernando Meirelles e o indo-americano Ramin Bahrani, respectivos diretores dos emblemáticos “Cidade de Deus” (2002) e “Tigre Branco” (2021), tiraram sete? Aos 48 do segundo tempo, digo, aos 48 minutos da narrativa, quase na metade do longa, surgem as figuras de dois bolivianos e um haitiano (eram cinco; os outros dois ficam como J. Pinto Fernandes no poema de Drummond, completamente deslocados), também aliciados por Luca, representado por Mateus que, conforme dissemos antes, soube jogar o jogo e assumira (parcialmente) seu lado vilanesco. Como se pode ver, a força do roteiro de Moratto e Thayná Mantesso é mesmo o pano de fundo, vivificado pelo personagem de Malheiros.
A alusão à necessidade de se fazer escolhas é o filé da trama, iguaria sabiamente escondida por Moratto, talvez até em excesso, como se o diretor temesse dividir com espectadores gulosos o banquete por trás do desempenho do personagem central. Christian Malheiros, irretocável ao dar vida a tipos marginais e incompreendidos em produções como a série “Sintonia” (2021) e “Sócrates” (2018), filme também dirigido por Moratto, reproduz os ótimos trabalhos na composição de Mateus, a todo momento deixando clara a hesitação do protagonista — sempre ameaçado por uma espada de Dâmocles cujo fio se esgarça mais e mais — em seguir com seu plano, traçado ao sabor das contingências, sem nunca ter um indício por mínimo que seja, sobre se está fazendo a coisa certa. Não está, mas não se pode concluir que haja uma coisa certa a se fazer. Seu caminho, como o de Sócrates, seu personagem no em 2018, é tortuoso, escorregadio, sem volta e sem perdão.
Lamentavelmente, não se pode replicar os elogios à atuação de Christian Malheiros ao, digamos, empenho, de Rodrigo Santoro. O já veterano, cabelo e barba brancos — mais a barba que o cabelo —, poderia ter aproveitado a experiência ao longo de quase 30 anos de carreira para aprender a dizer não. É vexatório ter de constatar que o talento de que Santoro dispunha no princípio da carreira — quando deu vida, sem figura de linguagem, a tipos densos o como Frei Malthus da minissérie “Hilda Furacão” (1998), de Glória Perez, ou Wilson Souza Neto, no primoroso “Bicho de Sete Cabeças” (2001), baseado em “Canto dos Malditos”, autobiografia do escritor Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008) — era vidro e se quebrou. Passadas quase três décadas, o sotaque do ator petropolitano continua a ser uma pedra no sapato, dele e dos roteiristas, que com a história já se encaminhando para um desfecho inteligentemente realista, investido da aridez exata, inventam que Luca é… do interior do estado do Rio de Janeiro.
Anti-herói schopenhaueriano para ninguém botar defeito, Mateus já figura entre os grandes personagens da filmografia brasileira. Christian Malheiros é capaz de imprimir a seu protagonista a dubiedade moral de que uma interpretação como essa — complexa, desafiadora, oblíqua, de um sujeito ora apaixonante pela fibra moral, ora abjeto por capitular com o indecoroso e com a delinquência — carece. Suas aparições, sempre cirúrgicas, até permitem que o público esqueça a mediocridade de Rodrigo Santoro, que em algum momento de sua trajetória profissional deve ter escutado de algum sabido que fazer televisão era motivo de demérito e preferiu ir passar vergonha na tela grande. O mundo ainda há de evoluir o suficiente para ter na televisão e no cinema outros profissionais do gabarito de Christian Malheiros.