Há coisas que só se pode dizer por carta. Justamente por conter as mentiras salvadoras que evitam mágoas desnecessárias, as cartas sobreviveram ao imediatismo do e-mail, das mensagens de aplicativo, de tudo o mais que a nova musa da tecnologia canta, a fim de iludir os menos pacientes e consolar os mais românticos.
“O Menino que Lia Cartas” parece perdido no tempo — e, de certa forma, está mesmo. No filme do diretor sul-africano Sibusiso Khuzwayo lançado em 2019, Siyabonga, doze anos (uma performance emocionante de Bahle Mashinini), se desloca com os pais de Johannesburgo rumo ao vilarejo onde mora sua avó. Tudo no enredo é dito, ou melhor, sugerido por meio de tanta sutileza que as vezes até se torna difícil tirar alguma conclusão quanto ao que pode estar se passando. Mas não há lugar para mal-entendidos, tampouco aborrecimentos, aqui. Logo se sabe que os pais de Siya enfrentam uma crise conjugal, agravada por problemas de dinheiro, e que o melhor para todos é que ele e a mãe se aguentem uns tempos fora da cidade grande. Siyabonga, claro, não está nada contente, mas faz o que pode a fim de se enquadrar à nova vida. A avó, dona de um pequeno armazém que faz as vezes de correio, o incumbe de catalogar e ler para os destinatários, todos analfabetos, as cartas que chegam.
Esse é o verdadeiro arco dramático no enredo. No mundo, são quase oitocentos milhões de pessoas incapazes de ler e escrever, fora os ditos analfabetos funcionais, que leem (mal) e escrevem (pior), mas não conseguem interpretar corretamente um texto. A África e a Ásia são os continentes em que se observa o cenário mais aterrador, ainda que na África do Sul, em especial, graças a políticas públicas que deram alguma ênfase à educação de base, o quadro seja menos trágico. Entretanto, países africanos como Benin, Burkina Fasso, Chade, Etiópia, Gâmbia, Guiné, Haiti, Mali, Níger, Senegal e Serra Leoa não escapam à triste constatação de ter mais da metade de sua população adulta completamente alijada do processo de alfabetização. São os únicos em que isso acontece.
A chegada de Siyabonga ao povoado se presta a fazer aquele lugarejo perdido no coração da África Meridional renascer. Desde a sequência inicial, quando o espectador é sequestrado, por meio das tomadas sem rodeios de Khuzwayo, pela beleza da paisagem árida das savanas da África do Sul, pinceladas de um dourado esmaecido, se percebe o talento de Bahle Mashinini. A melancolia que o paralisava por causa da separação iminente dos pais dá lugar a uma euforia que cresce na medida exata conforme Siya toma intimidade com seu novo ofício e percebe que pode transformar, com sua força infantil, o cotidiano dos habitantes do vilarejo. Mashinini faz essa transição mediante expressões muito bem trabalhadas, todas amarradas a um propósito específico.
O mote do encantamento de um menino por uma mulher adulta, explorado à luz da perversão em filmes como o brasileiro “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), dirigido por Hector Babenco (1946-2016), ganha ares de um romance providencialmente açucarado num mundo amargo demais no curta de Sibusiso Khuzwayo. É óbvia a paixão platônica que o protagonista alimenta por Nobuhle, vivida por Nomalamga Shabane, cujo marido, Menzi, de Andile Gumbi (1983-2019), como todos os homens jovens, fora para Johannesburgo em busca de melhores condições de vida.
Nobuhle, como todos os moradores da aldeia, mormente as mulheres, também é analfabeta e precisa que Siya lhe ponha a par do que quer lhe dizer o marido. Numa das cartas que ele lhe envia, Siya fica sabendo que Menzi se apaixonara por outra mulher, mas omite esse trecho para Nobuhle, e passa a escrever ele mesmo para ela, se passando por Menzi. A partir de então, a personagem de Shabane reacende a chama do relacionamento entre os dois — há muito apagada, como Menzi faz questão de explicitar numa das correspondências — e passa a se mostrar mais resignada quanto a enfrentar a ausência do marido, imaginando que ele ainda a ama. Como se atraísse para si as melhores energias do universo, como numa oferenda a Oxum, a deusa do amor nas religiões de matriz africana, a palavra de Siyabonga inverte a realidade. O desfecho da história, por evidente, não é o que ele tinha em mente, mas por outro lado, o garoto experimenta uma alegria inesperada, como se recompensado pela orixá.
Mesmo em tão pouco tempo, seu único calcanhar de Aquiles, o filme dá uma aula de como se conduzir uma história, apresentando um clímax bastante verossímil, num tom saborosamente próximo ao de realismo fantástico. Se a ignorância é uma forma de insanidade, outrossim pode ser virtuosa, até beatífica. Ode à inocência, tema tão caro ao cinema e meio no ostracismo, “O Menino que Lia Cartas” é tão intenso quanto um sonho, predicado de que autores da melhor literatura africana, a exemplo de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, igualmente se utilizam em seus romances. A doçura de personagens como Siyabonga, um tipo que não se via pelo menos desde “Cinema Paradiso” (1988), de Giuseppe Torrnatore, é uma pequena prova do quão diferente pode ser o mundo. Do quão melhor pode ser a vida.