Faz 30 anos que se começou a falar em situação cronicamente inviável e desmanche social. Chico Buarque foi um dos primeiros a perceber o movimento negativo, ao escrever “Estorvo” (1991), que é até hoje um objeto não identificado da literatura brasileira. Agora, o escritor Michel Laub parece fechar o ciclo que identificou o abismo nacional de longo prazo. Num experimento literário de alta voltagem, o romance “Solução de dois Estados” (2020) percorre a vida de dois personagens entre os anos de 1990 e 2018.
Recomenda-se aos leitores e às leitoras prender a respiração porque o livro é um mergulho radical em termos de conteúdo e de forma narrativa. A melhor ficção é sempre um teste para superar os limites da escrita, do tempo e do espaço existentes. Laub assume o desafio de segurar o touro pelos chifres e enfrentar a experiência do presente — algo que um grupo de autores e autoras brasileiros decidiu fazer nos últimos tempos. A questão é como estilizar uma situação real que parece incompreensível e se decompõe.
Laub cria os testemunhos dos irmãos Alexandre e Raquel (os dois mundos ou dois estados do título). A narrativa apaga a figura do narrador tradicional (seja em primeira ou terceira pessoa) e se faz por meio do que seriam gravações para um filme documentário. Há de saída o jogo pactuado de ficção e realidade com os leitores, mas tudo sai da cabeça de Michel Laub, que imagina as trajetórias de três décadas com traumas e ressentimentos entre os dois irmãos. As falas desmontam qualquer relação de fraternidade.
O achado de Laub está na recriação de uma escuta. Como sugere um pequeno poema de Francisco Alvim, a providência maior de hoje é “escutar” as outras pessoas. Não se trata mais de priorizar a fala ou o olhar de um sujeito acima do bem e do mal (o narrador de clássico de ficção ou cientista que busca a objetividade). Em meio à situação do presente, é mais importante captar e entender o que dizem os personagens. Estes encontram-se mergulhados no horror contemporâneo.
“Solução de Dois Estados” traz os depoimentos de dois membros de uma família brasileira de classe média, branca e com sobrenome europeu (Tommazzi), na cidade de São Paulo do ano de 2018. O que se apresenta no romance são os seguidos traumas. Laub já mostrou que sabe explorar bem as feridas da memória, como o avô de “Diário da Queda” (2011), que incorpora o tema do Holocausto para a literatura brasileira. Ou o genocídio de Ruanda que aparece na trama de “A Maçã Envenenada” (2013).
Narrar o trauma
O fio narrativo do livro é relativamente simples, mas aos poucos vai se desdobrando e revelando as vidas complexas em situações-limite e indizíveis. A documentarista alemã Brenda Richter vem ao Brasil para filmar uma história assustadora que repercutiu em todo o mundo. Atriz de vídeos pornôs veiculados na internet, a artista performática Raquel Tommazzi foi espancada fisicamente por um homem no palco onde participava de um seminário sobre violência, em fevereiro de 2018.
Raquel está com 46 anos de idade e pesa 130 quilos, tendo recebido na infância o apelido de “Vaca mocha”, numa alusão ao animal falante do programa de televisão “Sítio do Pica-pau Amarelo”, baseado na obra de Monteiro Lobato. Por isso, seus filmes pornôs são intitulados com o apelido (vaca mocha) e exibem cenas de violência física extrema. O agressor se chama Jessé, um homem conhecido de seu irmão Alexandre, que segundo ela seria o verdadeiro mandante do ataque no seminário.
O irmão de Raquel tem 42 anos e mantém uma rede de academias de ginástica e lutas na periferia da cidade de São Paulo. Ela o chama de “miliciano religioso”, por suas ligações com o pastor evangélico Duílio em negócios e na estranha organização chamada Império. Alexandre relata, no documentário, a desgraça em que caiu a família após a morte de seu pai, empresário falido pelos efeitos do Plano Collor em 1990. O tom é de ressentimento pelo empobrecimento familiar e pela figura de Raquel.
“Império do homenzinho rico. Império do homenzinho esportista e popular. Império do homenzinho que ligações a dar em nome da vocação. Já eu prefiro chamar de império miliciano”, diz Raquel, em tom ácido. “O que ele [Alexandre] faz. Em público e em privado. Sozinho e com os jagunços dele. As mesmas coisas que ele sempre disse e fez comigo, com a minha mãe”, acrescenta. Pela fala de Raquel, o Império de Alexandre não passa de uma milícia no modelo carioca ou de uma organização como o PCC.
Do ponto de vista do irmão, Raquel é a “vaca” pornográfica e contrária a seus “valores” formados na igreja, no trabalho e na família com esposa e dois filhos. Segundo diz, ela teria merecido a surra no evento, porque faria as mesmas cenas em seus filmes publicados no XVideos e no Pornhub. Em suas obsessões de família, ele não perdoa a ida da irmã para estudar arte na Europa, e muito menos o trabalho performático dela. Ainda defende procedimentos como a famosa “cura gay” por meio da religião.
“Você quer falar de verdades, pense no que as pessoas veem no celular. No que os filhos delas aprendem na escola. Agora pense no que a minha irmã faz, o mercado que ela criou… A pessoa se comporta como um pedaço de carne. O público vai no museu e vê um pedaço de carne”, diz Alexandre, acrescentando: “A artista independente Raquel Tommazzi aprendeu, apontar o dedo e esperar que o acusado sinta culpa, ai, ela tem razão, o pedaço de carne só existe por causa da violência estrutural”.
Tipos sociais
Os dois irmãos encarnam personagens-tipo do presente brasileiro ou alegorias do conflito maior na sociedade. “Essa país é uma selvageria”, diz Raquel, repetindo a expressão comum dita por conservadores e progressistas. Alexandre é o empresário que vive das ruínas do capitalismo nacional a partir dos anos 1990, ou seja, a crise nacional não surgiu recentemente e tem décadas de existência. Cada plano econômico no passado é lembrado por ele como um trauma e uma destruição de vidas e sonhos.
Sua visão apocalíptica encarna o discurso conservador e a defesa abstrata de “valores”. A degradação pode ser corrigida, desde que se elimine uma parte da sociedade encarnada na figura de Raquel. Não há mais utopia modernista de “equilíbrio de antagonismos” ou a busca da sutileza perdida do último disco de Caetano Veloso. No conflito aberto, Alexandre transforma ódio em negócio lucrativo, seja ensinando lutas violentas (o krav magá em suas academias), seja gravando vídeos na internet.
“Nesses vídeos aí eu falo das coisas que falei para você [a documentarista]. Eu falo do cara que está na merda e se transformou. Do cara que tem uma família e respeita a família. Do cara que bota os filhos na escola, eu tenho dois filhos. Eu amo os meus filhos. Eu tenho o direito de botar eles numa escola que respeita meus valores. Eu não quero filho meu aprendendo com drogado, pode ser? Com prostituta. Com o cara que pega aids porque deu a bunda e depois passou aids para a esposa”, pontifica Alexandre.
Por sua vez, Raquel é a representação do artista colocado em rota de colisão com o novo conservadorismo — popular, diga-se. Michel Laub expõe a contradição atual pelo fato de a arte ser patrocinada fortemente por bancos. No livro, o evento central do espancamento de Raquel é pago pelo fictício Banco Pontes e sua fundação cultural. Arte performática financiada por banqueiros apreciadores de cultura? O resultado só pode ser o ataque dos ressentidos que se agarram às ideias de valores familiares e religiosos.
Tipos sociais são sempre exagerados e facilitam a condensação de representações. A habilidade de Michel Laub está no entrelaçamento dos “tipos” Raquel e Alexandre. Cada depoimento traz repetições e revelações de traços novos. Entre os personagens centrais, emerge aos poucos a figura de documentarista Brenda. Ela foi casada com um brasileiro que morreu de bala perdida num episódio banal. É impossível que a cineasta alemã mantenha o olhar frio do observador (situação que explode no final do livro).
Apagamento do narrador
Uma história como a de “Solução de dois Estados” poderia ser narrada de forma convencional, como romance realista ou por meio do “realismo traumático” em primeira pessoa. Mas a matéria brasileira abordada por Laub, creio, demandava uma forma literária que expusesse o calor das questões tratadas e impossibilidade de síntese convencional. E mais importante: o tempo presente é de “escuta” de falas vivas, contraditórias e muito traumáticas. Como sugere Francisco Alvim, “quer ver? Escuta”.
O livro é dividido em capítulos com os nomes que remetem às imagens filmadas para o documentário de Brenda Richter e se alternam ao longo da narrativa: “Material pré-editado, “Material bruto” e “Extras/material a inserir”. O conjunto “pré-editado” traz só as falas de Alexander e Raquel. A parte “bruta” reúne o que seria a íntegra e os conflitos crescentes dos entrevistados com a cineasta — que vai chegar ao auge nas páginas finais. Os “extras” são o suplemento, o descartável, mas que explicam muito.
A forma escolhida por Laub remete à estratégia narrativa chamada pela crítica literária Flora Süssekind de “apagamento do narrador”. Não existe um ser fictício implícito ou explícito para guiar o leitor. Materiais diversos surgem ao longo do texto para a leitura. É o caso dos romances da inglesa Ivy Compton-Burnett, feitos apenas com diálogos e narração invisível. Na literatura brasileira, o recurso foi usado por Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu e Sérgio Sant’anna.
O resultado obtido por Michel Laub é incômodo, pois aparecem dois personagens que verbalizam a “selvageria” da vida concreta. Não é de se estranhar que “Solução de Dois estados” se aproxime das distopias urbanas que apareceram nos últimos 30 anos a partir de “Estorvo”, de Chico Buarque. A narrativa distópica ganhou fôlego renovado com as obras recentes de Ana Paula Maia, Natália Borges Polesso, Márcia Tiburi, Bernardo Carvalho e Daniel Galera (que prefere falar em “catástrofes”).