Se é mesmo verdadeira a hipótese de que uma sociedade molda-se conforme seus costumes, então manifestações artísticas deveriam se apresentar como um espelho da vida, retratando com toda a fidedignidade aspectos os mais comezinhos da realidade e de quem a compõe. É o que se vê em “Whisky”, ainda que seja necessário se fazer algumas considerações.
O longa-metragem, dirigido pelos uruguaios Juan Pablo Rebella (1974-2006) e Pablo Stoll, lançado em 2004, não tem reviravoltas de tirar o fôlego nem leva o espectador a se perder em elucubrações acerca do que os personagens deveriam ter feito ou tal ou qual momento de suas histórias para se encontrarem da maneira como estão. A graça do filme, tido como a terceira produção latino-americana mais importante dos últimos 20 anos numa lista com dez títulos, está justamente em transmitir a ideia de naturalidade, da dureza da vida como ela é, em que tudo pode acontecer, inclusive nada.
Esse “Whisky” não se toma de uma talagada só, e nem se derrama. A vida doentiamente pacata de Jacobo, de Andrés Pazos, dono de uma tecelagem quase artesanal num bairro afastado de Montevidéu, é servida com muita cerimônia, e deve ser apreciada assim. Jacobo Koller, um sessentão cheio de manias, está agora claudicando, uma vez que um de seus esteios lhe foi tirado com a morte da mãe, de quem cuidava pessoalmente. Só lhe restara se ocupar de seu pequeno negócio, cenário que toma conta de quase todo o filme, onde chefia Marta Acuña — um trabalho primoroso de Mirella Pascual —, seu braço-direito, e mais duas operárias. É isso o filme até o que se poderia chamar, com alguma boa vontade, de plot twist, no fim do primeiro terço da história.
A chegada do irmão mais novo, Herman, há 20 anos no Brasil, e sem ter voltado ao Uruguai nem para o funeral da mãe, o que por si só já é um indício bem marcado da diferença abissal entre os dois —, se constitui um desafio para Jacobo. Herman encontrara, afinal, um espaço na agenda atribulada de empresário bem-sucedido (ou, ao menos, mais bem-sucedido que o irmão mais velho) e pai de família, a fim de tomar parte na celebração da matzeiva, quando é assentada a lápide do morto, segundo a tradição judaica. Quanto à possível superioridade do caçula nas finanças, não há nada a se fazer, mas Jacobo não está convencido de que deve admitir a derrota para a competição que ele disputa sozinho. A leviandade do personagem de Pazos pode até ferir suscetibilidades de quem não apreende de imediato a profunda tristeza por trás da vida de Jacobo, até porque é difícil acreditar que ele tenha mesmo toda essa tristeza, tão alto e espesso é o muro que ergue em torno de si. Ao propor a Marta que encampe com ele a farsa de manterem um casamento de fachada pelo tempo em que Herman permanecer hospedado em seu apartamento, o protagonista passa de todos os limites, reação que a funcionária até esboça, mas ou por precisar muito do emprego ou por uma outra razão qualquer, sobre a qual o público começa a conjecturar, termina aquiescendo.
O personagem de Jorge Bolani, muito confortável entre oscilar de coroa boa-praça a carrasco involuntário de Jacobo, se presta a construir o principal arco dramático de “Whisky”, quando a trama se encaminha para onde a audiência esperava que fosse mesmo. A figura excessivamente despojada de Herman — um sujeito de todo comum, em muito parecido ao irmão mais velho, mas cuja natureza solar contrasta com violência frente à apatia exercitada de Jacobo e à falta de vigor de Marta, que talvez nunca se tenha dado conta disso (até então) — vai sendo desvelada por Rebella e Stoll com muita sutileza, restando claro que, à primeira vista, sobressaem nele as semelhanças com o irmão, não o que os difere. É na objetividade artificial dos diálogos que se nota a tensão de animosidade entre os dois, que nunca aflora, como na cena em que, sentados à mesa da cozinha, Herman pede para ver o ímã em forma de uma mão com o polegar erguido, pregado na geladeira atrás de Jacobo. O irmão mais velho passa o acessório ao mais novo, que começa a dizer seu bife sobre a vontade de mandar fazer uns ímãs em forma de calendário para distribuir aos clientes. Ao fim do extenso monólogo, devolve o objeto ao irmão, que o coloca de cabeça para baixo, ou seja, como que deixando irrefutável sua desaprovação de tudo aquilo: da tecelagem já não ser a mesma, perdida num cafundó da capital de um país periférico de um continente que sempre ficou para escanteio; do insucesso com as mulheres, que nunca se apaixonaram por ele — não a ponto de o quererem por marido, ao menos —; da mãe, que mesmo judia, não foi capaz de ser eterna, e morreu; da vida, enfim. Da vida.
O nome do filme foi escolhido a partir de uma observação sagaz dos diretores, aproveitada com gênio quanto a definir a falsidade que caracteriza o casal formado à guisa da insegurança de Jacobo e do pouco amor-próprio de Marta, percebidos por Herman, que, a seu modo, tira proveito da estranheza das circunstâncias, deixando evidente uma faceta levemente sádica de sua personalidade. Contudo, é o tipo encarnado por Bolani quem enxerga no irmão mais velho e em sua funcionária exemplar a humanidade apagada em cada um. Em dados momentos da narrativa, subentende-se que Herman desvendou o segredo e passa a brincar com os dois, ora aceitando o jogo, ora subvertendo-o. Como Jacobo e Marta são amadores, resta patente que algum fio dessa trama há de se romper e, finalmente, a verdade virá à tona, uma vez que o sofisma central precisa de outros para se sustentar. E eles são vulgares demais, previsíveis demais para tanto.
Com um enredo que vai fundo no que há de mais secreto no homem, o grande mérito do filme é tirar do limbo questões a que a mais ligeira menção já provoca calafrios, como fez o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) com Morangos Silvestres (1957). A solidão de indivíduos como Jacobo ou Marta passa ao largo não da amorfa humanidade, mas de gente muito próxima deles — e se é notada, logo desperta tentativas covardes a fim de ser justificada, ainda que se possa argumentar que é perfeitamente possível, sim, se ser sozinho e feliz, ao contrário do que diz a velha canção. Sozinho, não solitário.
“Whisky” se debruça sobre aspectos que julgamos condenáveis numa sociedade que canta a vida como a arte do encontro — surradíssimo chavão que se prova acintosamente enganador, já que desejamos todos permanecer na comodidade de nossas solidões —, mas que não dispõe da sensibilidade necessária para enxergar além do seu quintal. O outro nos desperta repulsa só por não ser nós mesmos.