Ele influenciou Jerry Lewis, descobriu Terry Gillian (diretor de “Brazil — O Filme”), Robert Crumb, Jules Feiffer e fundou a revista de humor mais famosa do mundo. Seu nome é Harvey Kurtzman e você, provavelmente, nunca ouviu falar dele. Não se preocupe. Mesmo nos EUA, sua terra natal, ele é virtualmente desconhecido. Embora cultuado por um time seleto de humoristas — que inclui Woody Allen, a turma do Monty Python e o próprio Lewis — Kurtzman foi vítima da “Síndrome de Frankenstein”: suas crias ficaram mais famosas do que ele.
Comecemos pelo início. Estamos em 1950. Os Estados Unidos vivem uma época de grande prosperidade econômica, mas um espectro ronda a América: o perigo vermelho. A bomba atômica, atirada em Hiroshima cinco anos antes, mudou o mundo para sempre. Os soviéticos também têm artefatos nucleares e todos acreditam que a terceira guerra mundial explodirá em breve — e desta vez o planeta vai junto. Mas a maior preocupação da direita americana é com atividades subversivas dentro do próprio país. Em setembro de 1950, é aprovada a Lei Contra Atividades Antiamericanas do senador Joseph McCarthy. Na prática, a lei dá ao FBI de J. Edgar Hoover o direito de vasculhar correspondências, grampear telefones, pressionar e arrancar confissões de qualquer um que ande na rua com camisa vermelha. É o começo dos “anos dourados”.
Neste ambiente pacífico e idílico, William Gaines assume a editora de seu tio, a Educational Comics. A empresa vai mal. A EC publica quadrinhos religiosos e educacionais. Não vende nada, naturalmente. Gaines mete os peitos. Primeiro, muda o nome da editora para Entertainment Comics (para manter a sigla EC) e começa a publicar quadrinhos de horror e guerra, como “The Haunt of Fear”, “The Vault of Horror” e “Tales From the Crypt”, que acabou virando cult e se transformando em série de cinema nos anos 80. Para ajudá-lo, Gaines convida o cartunista Harvey Kurtzman. Kurtzman faz tiras para o “The New York Herald Tribune” e uma página de humor chamada Hey Look para a “Timely Comics”. Surpreendentemente, se dá bem em quadrinhos de horror e guerra. Os comics da EC têm estruturas de contos: são narrativas curtas, sem personagens fixos e fogem ao tradicional happy end. Pelo contrário, na maioria das vezes, são depressivos e assustadores.
As revistas são um sucesso e a EC começa a tirar o pé da lama. Em 1952, Harvey Kurtzman tem a ideia que tornaria a editora lendária. Uma revista no mesmo estilo (narrativas curtas, sem personagens fixos), só que humorística, algo inédito na indústria editorial americano. Gaines topa e, em outubro de 1952 (há quase cinquenta anos), o primeiro exemplar de “Mad” vai para as ruas.
Mas calma lá! O “Mad” de Kurtzman não tinha nada a ver com a revista de mesmo nome que circulou até bem pouco tempo. Cercado pelos desenhistas mais geniais de sua geração — Bill Elder, Jack Davis, Wally Wood — Kurtzman satirizava literatura, quadrinhos, filmes, séries radiofônicas e o que mais desse na telha. Nada ficava de pé. Os diálogos pareciam escritos por Groucho Marx; os quadrinhos (principalmente os de Bill Elder) eram quase surrealistas e o humor da revista era extremamente sofisticado. Ou seja, tinha tudo para dar errado. Mas deu certo. Em pouco tempo, “Mad” era a revista mais vendida da EC e ganhava dúzias de imitações: “Panic”, “Flip”, “Get Lost”, “Wild”, “Riot”.
Os anos loucos
Enquanto Kurtzman e gang radicalizavam o humor do “Mad” (fizeram até uma edição inteira vom a biografia de um artista fictício), a direita americana também fazia das suas. Em 1953, Fredric Wertham escreve o livro “A Sedução dos Inocentes”. Wertham, psicólogo, defendia a tese de que os quadrinhos estavam sendo usados (pelos vermelhos, claro) para destruir a família americana. Foi ele o primeiro a jogar lama no ventilador de Batman e Robin. Mas, pior que os super-homos, eram os quadrinhos de horror. Segundo Wertham, a visão de mundo “distorcida” dessas revistas afetava para sempre a mente dos pobres leitores. Eram uma ameaça às crenças e às famílias americanas, num momento em que os inimigos do país desejavam exatamente isso: destruir as instituições para implantar o comunismo.
Wertham foi levado a sério. Seu estudo serviu de pretexto para a criação do Código de Ética. Os gibis considerados “legíveis” vinham com um selinho estampado na capa e, portanto, podiam ser comprados sem susto pelos papais zelosos. Mesmo no Brasil, as revistas eram publicadas com este selo ridiculo até meados dos anos 1970.
É bom que se diga: o Código de Ética foi estabelecido pelas próprias editoras americanas (sob pressão, é verdade). Nos EUA, a censura sempre esteve nas mãos da tal sociedade civil. Seja como for, a EC não era uma grande editora, não tinha forças para impor seu estilo no mercado. Sem o “selo” nas capas e com uma campanha fortemente adversa liderada pelo “Reader’s Digest”, suas revistas começaram a vender cada vez menos e, inevitavelmente, foram fechando. Só restava o “Mad”. Os censores não sabiam o que fazer com aquilo. Nem William Gaines. Cedo ou tarde, os censores caíriam em cima da revista e a EC iria de vez para o brejo.
Os anos rebeldes
Foi então que Harvey Kurtzman teve a ideia salvadora: transformar “Mad” numa revista adulta, em preto e branco, inspirada na “Punch”, centenária revista inglesa de humor. Afinal, numa época de repressão, a única arma do humorista é esculhambar tudo e todos.
Em julho de 1955, saía o número um do novo “Mad”. Os desenhistas foram mantidos, mas a revista ganhou textos (uma sátira a Ernest Hemingway e uma coluna sobre a Rússia, escrita em caracteres cirílicos), fotomontagens, sátiras de propagandas e de filmes (o western “Vera Cruz” foi a primeira vítima). Kurtzman antecipou, em pelo menos dez anos, as revistas de humor modernas, como o “National Lampoon” e o nosso “Pasquim”.
William Gaines, no entanto, não estava contente. A revista era radical demais. Aquilo acabaria dando besteira. Gaines queria algo mais leve, consumível, menos problemático. Afinal, era ele quem pagava as contas. A diferença de opiniões virou briga, Kurtzman acabou demitido e o “Mad” virou a bobagem que você certamente conhece.
Harvey Kurtzman não ficou na rua por muito tempo. Entre seus fãs estava Hugh Heffner, dono da “Playboy”.
Uma breve historinha sobre Heffner: em 1953, ele era repórter da “Esquire”, a revista masculina mais sofisticada do país. Heffner pediu um aumento, que foi negado pela empresa. Ele se demitiu, foi para casa e criou a “Playboy”, literalmente, na cozinha de seu apartamento. A primeira edição saiu em dezembro de 1953 com Marilyn Monroe nua na capa. Foi um escândalo (lembre-se: não havia revistas de mulheres nuas na época). O número dois vendeu seis milhões de exemplares e, por pouco, não afundou a “Esquire”.
Heffner convidou Kurtzman para criar uma revista de humor na sua editora. Em 1957 saiu “Trump”. Luxuosa e sofisticada, a revista foi sucesso de crítica e fracasso de público. Heffner ainda não tinha “caixa” suficiente para bancar a revista e esperar um possível aumento de vendas. Depois de um ano, “Trump” acabou fechando. Heffner tentou de novo com “Humbug”, revista menos pretensiosa, que também não sobreviveu.
Entre mortos e feridos, salvaram-se dois: Kurtzman e Bill Elder (que estava no time das duas revistas), foram convidados a fazer quadrinhos na “Playboy”. Surgiu “Little Annie Fannie”, uma sátira à tira “Little Orfan Annie”, de Harold Gray, um dos cartunistas mais reacionários dos EUA. Annie, a original, era uma orfã criada por um milionário racista e vendedor de armas. A Annie de Kurtzman e Elder era uma louraça gostosa e ingênua que sempre perdia as roupas no meio da história. Em “Little Annie Fannie” Kurtzman ridicularizou a política, a religião e a mídia. Os quadrinhos de Elder, cuidadosamente pintados, tinham, já na época, o mesmo padrão das melhores grafic novels de hoje em dia.
“Little Annie Fannie” foi publicada até os anos 70 (inclusive pela “Playboy” brasileira), até que Kurtzman foi convidado para ser editor de humor de outra importante revista masculina. Adivinhe qual? “Esquire”, claro.
Os anos radicais
Neste meio tempo, entretanto, Kurtzman criou sua terceira revista de humor, considerada por muitos a melhor de todas: “Help!” Em “Help!”, Kurtzman reuniu os maiores talentos de sua geração com os cartunistas que estavam despontando naquele momento, como Robert Crumb (criador de “Fritz the Cat”), Gilbert Shelton (“Freak Brothers”) e Jules Feiffer (hoje em dia, cartunista do “Village Voice”). E não foi só: Jerry Lewis escreveu textos e participou de algumas fotonovelas, como vários outros astros americanos. René Goscinny, criador de “Asterix”, mandou contribuição da França. E Terry Gillian (que mais tarde se juntaria ao Monty Python) foi praticamente adotado por Kurtzman: sem ter onde morar, passou a dormir na redação da revista.
“Help!” pode não ter sido o maior sucesso de Kurtzman, mas foi a “ponte” entre duas gerações de cartunistas, revelou inúmeros artistas e escritores e foi a revista na qual ele escreveu e desenhou suas melhores histórias (mais tarde reunidas no livro “Jungle Book”). Mais que isso, “Help!” refletiu sua época: a explosão beatnik, o início da contracultura e o começo da era em que o conservadorismo e o liberalismo travariam uma batalha de vida ou morte em território americano.
Harvey Kurtzman morreu há 29 anos, em Nova York, depois de ter influenciado pelo menos três gerações de humoristas. Não por acaso. Kurtzman sempre soube que humor é coisa séria. Afinal, como diz Millôr Fernandes, “uma coisa é ser o rei dos palhaços, outra coisa é ser o palhaço dos reis”.