As mulheres de Machado de Assis

As mulheres de Machado de Assis

Virou um costume dizer que certos artistas são universais e atemporais. É uma visão que tenta isolar uma determinada obra em aspectos puramente estéticos e esvaziá-la das referências externas do mundo e da época em que foi produzida. Um olhar empobrecedor, dirão algumas pessoas, ou o mais correto para as artes, defendem outras. O escritor Machado de Assis é um desses objetos de disputa de interpretações, sobretudo na dúvida se é preciso conhecer o Brasil do século 19 para entendê-lo devidamente.

De tanto ser cobrado em vida, Machado deu o conhecido recado no ensaio “Instinto de nacionalidade”, publicado em 1873: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. E ninguém soube melhor do que ele desvendar os seres, os lugares e as coisas do Brasil. Podia falar assuntos distantes da realidade do país, mas a mensagem tinha a ver com o seu entorno carioca.

Os personagens machadianos são alegorias do Brasil imperial e da passagem para a República. Os leitores estetizantes torcem o nariz para essa leitura histórica. Mas está tudo lá nas histórias do autor. E mais interessante: as mulheres inventadas por Machado são mil vezes mais interessantes do que os homens. Elas pensam, tem saídas inteligentes para as situações, bem ao contrário deles que aparecem presos à realidade mesquinha do período – como a criação brasileira da fusão de liberalismo com escravidão.

Em seus romances e contos, Machado de Assis criou uma coleção insuperável de homens superficiais e equivocados do seu tempo e seu lugar. É uma galeria de seres ilustres que não valem um centavo, porém são admirados na sociedade que se ancora na desfaçatez. Não escapa um: Betinho acredita tolamente nas maldades de José Dias; Brás Cubas é o perverso mimado; Rubião é enganado porque não entende como funciona o Rio de Janeiro; e Simão Bacamarte enlouquece achando que os outros é que são loucos.

Como eles são os personagens centrais, pouca atenção se dá a elas nas leituras. Porém, as mulheres criadas por Machado têm o maior interesse e são reveladoras daquele universo brasileiro do século 19. Tome-se a Capitu, do romance “Dom Casmurro” (1899). Há questões mais pertinentes do que a discussão masculina sobre se ela traiu ou não o marido.  Diferentemente de obtuso Bentinho, que é o verdadeiro dissimulado e narrador traiçoeiro, ela encarna a inteligência e a modernidade do pensamento.

“Capitu, aos quatorze anos, tinha ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de susto, mas aos saltinhos”, nota Bentinho, que vai destruir a vida da esposa porque acredita nas maledicências dos outros. O narrador vai sendo envenenado pelas observações e invenções de José Dias, para quem Capitu tem os olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”.

Em “Quincas Borba” (1891), a personagem Sofia é a mestre nas artes da convivência social e deixa o protagonista Rubião, pobre coitado, completamente seduzido e perdido. Ele representa o comportamento antigo, superado pela modernidade da época. Ela domina bem as regras para sobreviver num mundo que passa a ser comandado por novos códigos sociais. Ao final, resta a Rubião a loucura, num misto de inocência provinciana e incompetência para lidar com as questões modernas.

Também são as mulheres nos primeiros romances de Machado que decifram o Brasil escravista a patriarcal do século 19. Elas comandam o ciclo da primeira fase dos romances “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878). Neste último, a personagem Estela escapa do destino medíocre e escolhe a profissão de professora para ter uma vida própria. Saem de cena as mocinhas inocentes do romantismo. Assim como a inteligência de Capitu, Estela traz um ponto de vista inovador.  

A riqueza das mulheres machadianas pode ser vista ainda na Sinhá Rita do conto “O caso da vara” (1891). Nessa história extraordinária, uma senhora encarna o poder da época e comanda a vida de todos que a cercam. Ela controla tudo e ameaça quem está em volta com uma vara para castigos. O susto do leitor é ver uma personagem feminina agindo da forma que se espera ver somente nos homens. Entre o riso e o choque, Sinhá Rita expõe a perversidade constitutiva da sociedade brasileira.

O Brasil de Machado é o local que perdeu o bonde da História, ao manter o trabalho escravo num mundo que já tinha trabalhadores assalariados. O autor vai estilizar em sua escrita a nova realidade que tornou a sociedade local uma aberração, em comparação aos países centrais (França, Inglaterra). O resultado é a criação de uma galeria de homens perversos e de mulheres que tentam escapar da violência cotidiana. Em Machado, são as personagens femininas quem têm algo positivo a mostrar aos leitores.