Tipos marginais dotados de charme invulgar, inteligência acima da média, muito senso de humor e, claro, uma personalidade gauche que, ao passo que os empurra para a vida no crime, os fazem dignos de pena por parte da audiência, assinalam a história do cinema desde há muito. Reproduzindo a fórmula com ajustes pontuais, “Exército de Ladrões: Invasão da Europa” parte com tudo para cima de quem assiste, se destacando por razões bem particulares.
Ludwig Dieter, personagem central do filme, vivido por Matthias Schweighöfer — que também dirige o longa, lançado em 29 de outubro de 2021 —, passou a fazer parte do inconsciente coletivo de cinéfilos de todo o mundo exatos seis meses atrás, quando do lançamento de “Army of the Dead”, de Zack Snyder, que vem a ser, não por acaso, o idealizador desta trama. O personagem foi tão bem recebido por público e crítica que inspirou uma justa abordagem mais aprofundada neste trabalho, um prelúdio, um prólogo (ou, como se convencionou chamar em cinema, uma prequel) da história anterior, e só a brincadeira de se desenvolver um filme que se presta a introdução de outro a partir deste segundo já parece muito estimulante, para diretor, elenco e espectador.
“Exército de Ladrões: Invasão da Europa” se vale da premissa de um roubo, deixando (parcialmente) de lado os zumbis da produção em que é inspirado, a fim de se concentrar no delito sobre o qual a história se desdobra. Uma interessante questão colateral se insinua aqui. “Army of the Dead” e “Exército de Ladrões: Invasão da Europa” parecem disputar a atenção e, dentro de algum tempo, a devoção do público, uma vez que as histórias, por incrível que possa parecer, se dirigiram cada qual para um rumo próprio e se tornaram independentes uma da outra. No caso do prequel, o filme vale o investimento de se empenhar mais de duas horas diante da tela — menos do que se constata em “Army of the Dead”, que dura quase duas horas e meia —, com a vantagem de ser muito mais fluido e seguramente muito mais linear.
A despeito da unidade do elenco, é o carisma de Matthias Schweighöfer o grande responsável pelo alcance de “Exército de Ladrões: Invasão da Europa”. O universo apresentado no longa anterior é pleno dos ganchos que remetem ao prequel e às tantas derivações dos personagens, os spin-offs. Frise-se que os enredos adquiriram vida própria e ninguém parasita ninguém: nem “Army of the Dead” depende do sucesso de “Exército de Ladrões” para continuar a ser procurado nem este se atrela necessariamente à matriz, a não ser num primeiríssimo momento, à guisa de referência. E, mais uma vez, o mérito deve-se, em grande medida, a Schweighöfer, um ator já experimentado que se lança destemida e acertadamente para a carreira por trás das câmeras.
E em se falando de acertos, “Exército de Ladrões” só ganha ao canalizar as atenções sobre Ludwig Dieter, um bancário que leva sua rotina sem maiores sobressaltos (e pouco dinheiro) em Berlim, seis anos antes de ir parar em Las Vegas, já um consagrado arrombador de cofres. Precisamente por causa dessa sua habilidade é que Dieter começa a vislumbrar alguma chance de dar uma guinada em sua vida, mesmo que por meios tortos. Ainda como Sebastian, seu nome de batismo, ele posta no YouTube vídeos (a que ninguém assiste) sobre violação de cofres. Ao se deparar com um comentário, o único em todo o perfil, sobre uma das gravações, fica sabendo de uma competição que reúne os maiores arrombadores de cofres do mundo. É aí que sua trajetória se reveste de outra perspectiva.
A partir desse momento, o filme se detém com mais zelo sobre a figura de Dieter, cuja interpretação de Schweighöfer dá algumas pistas acerca do destino do protagonista. A constituição verdadeiramente humana do personagem, lido como um homem, um indivíduo de fato, é o que faculta ao público fazer as necessárias deduções a seu respeito. Sua sexualidade, por exemplo, motivou questionamentos até perspicazes do ponto de vista intelectual. Em “Army of the Dead”, se denotava um suposto interesse carnal de Dieter por outros homens, o que, misteriosamente, foi “retificado” em “Exército de Ladrões”, uma vez que ele se apaixona por Gwendoline, personagem de Nathalie Emmanuel — e é correspondido. Patrulha ideológica? Medo do cancelamento? Mas a moda em todo filme, em especial ao longo dos últimos dez anos, justamente com o advento e a popularização das redes sociais, não é ter ao menos um tipo gay — mormente nos ditos filmes de macho, a exemplo de “The Old Guard” (2020), de Gina Prince-Bythewood, e “Moonlight” (2016), dirigido por Barry Jenkins, e tanto melhor se for o protagonista? Haverá o prequel do prequel, no intuito de esclarecer essas tantas elucubrações da plateia? A conferir.
Aludindo objetivamente ao tópico dos “bons” ladrões do cinema, esboçado no princípio deste artigo, “Onze Homens e um Segredo” é decerto a grande fonte de que “Exército de Ladrões” se nutre, mas também se testemunha no filme a influência de trabalhos como “Rei dos Ladrões” (2018), de James Marsh; “Cães de Aluguel” (1992), dirigido por Quentin Tarantino; e da franquia “O Poderoso Chefão” (1972-1990), clássico dos clássicos do subgênero em que todo filme com essa temática se inspira, de uma ou de outra forma.
Ao não ter a pretensão de reinventar a roda, Zack Snyder e, por extensão, Matthias Schweighöfer, elevam “Exército de Ladrões: Invasão da Europa” à condição de entretenimento esteticamente rico, respaldado por uma narrativa bem construída, em que cada elemento tem a sua função muito clara, todos convergindo para a reflexão apenas aparentemente surrada da inutilidade da vida criminosa. Por mais encantadoras que essas figuras se apresentem.