A arte, sempre visionária, interfere diretamente na forma como uma sociedade passa a ver o mundo e a encarar suas próprias mazelas, públicas ou íntimas, declaradas ou não. Se se puder qualificar o cinema feito na Ásia à luz de apenas um raciocínio, a ideia mais acertada seria à de uma arte afinada com seu tempo, que prima por exaltar a mudança de determinados comportamentos, sem, contudo, abrir mão das tradições e de valores considerados obsoletos e mesmo faltos de sentido por uns tantos presunçosos frente à dureza da vida neste ainda incipiente século 21.
Lançado em 2 de novembro de 2018, “Dear Ex” não é exatamente uma comédia, segundo se vende o filme por aí. Em se tomando o argumento central do enredo ao pé da letra, confrontado com a urgência da questão que encerra e, ainda, juntando-se a essa análise a intensidade das atuações, estabelecer qualquer vínculo entre o trabalho dos diretores taiwaneses Chih-Yen Hsu e Mag Hsu — que também fizeram juntos o bonito “I Missed You” (2021) — e uma narrativa leve, pensada conscientemente para fazer rir, é um disparate. O que acontece é que, como a vida ela mesma é cheia de situações extremas (ou trágicas propriamente) que não deixam de suscitar respostas desarmadas, o dramático e o cômico de uma história tendem a se cristalizar um no outro. E há que se exaltar quem entende isso.
A ideia de que parte “Dear Ex” é assumidamente melodramática, nada original — quiçá o fosse mais de quarenta anos atrás, quando surgiu a primeira versão de “A Gaiola das Loucas” (1978), de Édouard Molinaro (1928-2013), regravado com ares de superprodução por Mike Nichols (1931-2014), em 1996; ou, mais recentemente, “Longe do Paraíso” (2002), dirigido por Todd Haynes, cada qual num extremo silogístico diametralmente oposto — e exatamente por essa razão o modo como a trama é conduzida por Chih-Yen e Mag é tão importante, bem como, claro, o desempenho dos atores.
Trata-se de uma história de amor, torto, mas amor — e que, à medida em que o longa avança, vai se revestindo de um aspecto completamente inusitado, mas nobre. A funcionária pública Liu Sanlian, uma composição irretocável de Ying-Xuan Hsieh, fora abandonada anos atrás pelo marido, Song Zhengyuan (uma participação especial do músico taiwanês Spark Chen), que passara a viver com Jay, de Roy Chiu, diretor de teatro alguns anos mais novo. O enredo deixa implícita a noção do conflito por trás do rompimento por meio dos flashbacks ao longo dos quase cem minutos de duração, nem exagerados nem perdidos na narrativa, tanto que Liu Sanlian não conseguira superar a perda, de acordo com o que se vê no decorrer de um dos muitos enfrentamentos entre ela e o companheiro do ex-marido depois que Song Zhengyuan morre de câncer no fígado e ela decide procurar Jay. A personagem de Ying-Xuan Hsieh exige que ele lhe devolva o dinheiro do seguro de vida que o músico lhe deixara, como ela, por óbvio, logo fica sabendo.
Tudo poderia ser tacanhamente uma questão de dinheiro, como sugere Song Chengxi (Joseph Huang), filho de Liu Sanlian e Song Zhengyuan, mas a verdade é que, depois de anos de humilhações veladas, a mulher decide se vingar, ainda que mirando a pessoa errada, num momento também nada conveniente. A situação descamba para a graça involuntária, sem, no entanto, resvalar no patético, no momento em que Song Chengxi se aboleta na casa de Jay, uma vez que encontra nele muito mais afinidades que na própria mãe — o que não é nenhum mérito para Jay; o garoto se entende melhor com qualquer um do que com a mãe. Desse ponto em diante, a partir do relacionamento insólito dos três, o filme começa a crescer.
A forma como as cores, a iluminação e as sombras estão dispostas é outro dos predicados do filme, precisos o bastante para reforçar uma história que se baseia na complexidade das relações humanas. O entendimento que o diretor de fotografia Jhih Peng Lin tem do enredo quebra as ranzinzices de Liu Sanlian mediante o uso de gráficos, grafite e ideogramas estilizados ao passo que a trama se desenvolve, além da aplicação de nuances amarelas, vermelhas, verdes e roxas, que evidenciam a barafunda do pequeno apartamento de Jay, compartilhado a contragosto dele e da protagonista com Song Chengxi. Gradualmente, o roteiro expõe algumas superfícies de contato entre Jay e Liu Sanlian, além do amor pelo mesmo homem, hoje já morto. Meio a fórceps, Jay passa a ter pelo garoto um sentimento afetivo, o que Liu Sanlian é obrigada a reconhecer — não obstante, tivesse há até muito pouco tempo a vívida suspeita de que o encenador fosse se aproveitar da proximidade e da semelhança do garoto com o pai para alguma finalidade escusa.
No terceiro terço do filme — vencedor do prêmio Golden Horse de Melhor Atriz, em reconhecimento pelo magnífico desempenho de Ying-Xuan Hsieh como Liu Sanlian, e Melhor Edição de Filme, para Lei Cheng Ching —, Chih-Yen Hsu e Mag Hsu levantam pontos de vista óbvios, mas até então nebulosos, como a possibilidade de Song Zhengyuan ter conhecido Jay antes de seu envolvimento com Liu Sanlian, o que se esclarece definitivamente e muda a perspectiva geral acerca dos eventos que se seguem. O desfecho, um manifesto em defesa da tolerância de Liu Sanlian para com Jay, e vice-versa, deixa patente que “Dear Ex” se propõe a abordar elementos tão idiossincrásicos do homem (atração física, amor, morte, luto, luta) sob o prisma do livre arbítrio, da liberdade de que cada um é dotado, por pior uso que faça dela. E, em sendo assim, complacência nunca é demais.