Pode demorar anos ou décadas para o reconhecimento do valor de um artista. No caso de Clarice Lispector, que foi celebrada em vida, a consagração teve um marco no centenário de nascimento, comemorado em dezembro de 2020. Tanto no Brasil, como no exterior, ela vem se tornando mais conhecida e virou modelo para jovens que se aventuram na literatura. A mitologia em torno dela é crescente.
Clarice apareceu recentemente como personagem de um conto de Chico Buarque. Um dos maiores pensadores de arte no mundo, o filósofo francês George Didi-Huberman publicou neste ano um ensaio para tratar das crônicas da autora. E em São Paulo, a grande exposição “Constelação Clarice” deve aproximar ainda mais a escritora de públicos de variadas idades.
O “momento Clarice” se avolumou sem parar, nos últimos anos, com a divulgação de materiais que permitiram conhecer sua vida breve — ela morreu aos 56 anos, em 1977. Foi editada a correspondência completa no ano passado, como as cartas para as irmãs e amigos escritores. Em 2009, Benjamin Moser publicou uma biografia em inglês, levando o nome da escritora para o público global.
O livro de Moser é polêmico e criticado porque, sem citar fontes, teria se apropriado de dados e interpretações do pioneiro trabalho “Clarice — Uma Vida que se Conta”, de Nádia Battella Gotlib. Ou seja, pode-se apreciar o trabalho de Benjamin Moser com uma boa pitada de sal e um tanto de desconfiança. Também há a boa biografia “Eu Sou Uma Pergunta”, de Teresa Montero.
Por mais que se contem histórias sobre ela, no entanto, a autora de “A Hora da Estrela” carrega ainda a imagem de um enigma para leitores e leitoras, digamos um “claro enigma”, para usar a expressão de Carlos Drummond de Andrade. A escrita personalíssima está nos livros, nas crônicas, nas cartas, porém ela toca em coisas que nunca foram ditas antes, parecendo quase indecifráveis.
Um estranhamento que serve de base, por exemplo, para “Para Clarice Lispector, com candura”, publicado por Chico Buarque em seu mais recente livro, “Anos de Chumbo e Outros Contos” (2021). O personagem central é um rapaz cuja mãe dá aulas de pintura à escritora já famosa. Um dia, ele a visita em seu apartamento para entregar um conjunto de poemas seus e passa a conviver com a autora de “A maça no escuro”.
A situação banal criada por Chico poderia estar numa narrativa de Clarice e funciona para conduzir o leitor de hoje pelo universo particular da autora no final dos anos 1960. Foi um período de mudança sua obra. Daquele ambiente, à beira mar de um Rio de Janeiro ainda com os resquícios de seus anos dourados, saíam os romances e os contos que ainda assombram meio mundo.
Leitores franceses
Assombro semelhante acomete os leitores atuais, principalmente no exterior. As traduções aparecem em diversos idiomas. Onde estava essa autora brasileira, nascida na Ucrânia em 1920, que ninguém conhecia?, perguntam os leitores incrédulos. A roqueira Patti Smith fotografou, tempos atrás, sua mesa de trabalho e lá estava uma cópia em inglês de “A Paixão Segundo G.H.” (1964).
Os franceses foram os primeiros a descobri-la. Em 1989, a renomada escritora Héléne Cixous publicou “A Hora da Clarice Lispector”, fazendo uma leitura feminista da autora brasileira. Há uma prometida tradução para o português que nunca sai. O texto “A Vertical das Emoções” (2021), de Didi-Huberman, é a mais nova contribuição francesa aos estudos clariceanos e será lançado no Brasil até o final do ano.
O filósofo francês escolheu as crônicas para se aproximar da escrita enigmática: “Ao começar a escrever, como dizem, uma coluna semanal no ‘Jornal do Brasil’ em 1967, Clarice Lispector havia tomado uma decisão, tanto ética quanto literária: não pretendia reter nenhum de seus movimentos de afeto, pois eram coisas bem diferentes do que simples mudanças de humor”.
Segundo ele, “Clarice Lispector não guardou nada para si [nas crônicas]: semeou, difundiu a todo custo para oferecer nestes textos, semana após semana, a emoção dos seus pensamentos tanto quanto o seu pensamento das emoções”. É certo que, com seu texto e sua reputação, George Didi-Huberman vai abrir ainda mais as portas para a obra de Clarice no mundo.
Para o público em geral, uma grande oportunidade para conhecer a escritora é a exposição “Constelação Clarice”, aberta no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo. A IMS guarda boa parte do arquivo pessoal da autora. As visitas podem ser feitas até fevereiro de 2022. Estão na mostra manuscritos, fotografias, discos e um acervo de pinturas de 26 artistas atuantes entre os anos 1940 e 1970.
Artista do conto
Ao longo do tempo, as grandes leituras sobre Clarice valorizaram a força de sua narrativa curta. Os contos e os romances finais inclassificáveis (“Água Viva”, “Um Sopro de Vida”) mostram o que o crítico Antonio Candido viu na estreia dela em “Perto do Coração Selvagem” (1943): a escritora que inovou no uso da linguagem. Os textos mais longos são primorosos, mas não carregam a densidade da forma breve.
Para Candido, a jovem escritora conseguiu, já em sua estreia, abrir um caminho novo ao se afastar tanto do realismo social dos chamados escritores nordestinos (Rachel de Queiroz, José Lins do Rego), como do intimismo dos escritores católicos (Octávio de Faria, Lúcio Cardoso). O segredo estava na exploração dos limites da escrita, em sintomia com o que se fazia na mais avançada literatura de meados do século 20.
“A força desta escritora parece estar na capacidade de manipular os detalhes, que vão se juntando para formar a narrativa e sugerir o mundo, sem que haja necessidade de uma estruturação rigorosa. Daí a fluidez imprecisa que dissolve muitas das suas histórias, ou, pelo contrário, o destaque luminoso que elas ganham na intimidade sugerida pela ampliação do pormenor”, afirmou Candido. “Talvez o conto, mais do que o romance, seja o instrumento melhor dessa escritora que parece extrair o essencial das dobras do acessório”, acrescentou.
O mais completo estudo sobre Clarice foi realizado por Benedito Nunes, no livro “O Drama da Linguagem” (1989), que cobre toda a carreira da escritora. Em anos recentes, o destaque está em “Clarice com a Ponta dos Dedos” (2005), de Vilma Arêas, com foco na fase final da autora. Pela qualidade da escrita, esses críticos podem ser considerados quase autores de ficção, além da inteligência do mais alto nível.
“Eu que escrevia com as entranhas, hoje escrevo com a ponta dos dedos”, afirmou Clarice, numa definição precisa de sua obra e que foi resgatada por Vilma Arêas. Os primeiros livros chocaram os leitores e as leitoras pela investigação da profundidade, das vísceras dos personagens, em busca do que não pode ser dito. A “ponta dos dedos” é a explosão criativa na linguagem das narrativas finais desconcertantes.
* Este texto é dedicado a Taciana Collet, que investiga os significados da vida breve e da escrita de Clarice Lispector.