Encarar a morte sob a perspectiva de uma inimiga cruel que, implacável, não poupa ninguém talvez não seja o melhor jeito de se levar a vida — e muito menos de se despedir dela. A partir desse raciocínio, Kirsten Johnson desenvolve o argumento central de “As Mortes de Dick Johnson”, assim mesmo, no plural, realçando as múltiplas possibilidades de como o fim da existência terrena pode se apresentar para o homem.
A diretora mal começava a se refazer do choque pela perda recente da mãe, que sucumbiu a uma lenta degeneração neurológica e à limitação motora que o mal de Alzheimer impõe, quando soube que C. Richard Johnson também fora diagnosticado com a doença. C. Richard Johnson, o Dick Johnson do título, vem a ser ninguém menos que o pai da cineasta e, como forma de catarse, a fim de tentar compreender sua vida depois do desaparecimento dele, Kirsten lhe sugere filmar versões de sua morte, todas dissociadas do Alzheimer, como uma maneira de ressaltar que, seja como for, tenha-se a idade que se tiver, morrer é uma possibilidade concreta que nos ronda a todos.
Contudo, a morte torna-se um dado do cotidiano quando se tem quase 90 anos — Dick tinha 86 quando protagonizou o documentário rodado pela filha, em 2018. Não é incomum a recepção abertamente negativa do público ao longa, que à mínima insinuação sobre o leitmotiv da história, a classifica imediatamente de brega, no melhor dos cenários — funesta, macabra e mesmo criminosa, no pior. Nada mais apressado e errôneo. Ao se fixar no resgate de memórias que nunca foram propriamente ruins, que evocam quase sempre momentos prazerosos da convivência de Kirsten com o pai, “As Mortes de Dick Johnson” tem como efeito colateral a reaproximação dos dois, separados não por um trauma emocional qualquer ou desavenças quanto ao estilo de vida de uma ou do outro, mas devido aos eventos próprios do dia a dia dela e dele, cada qual com sua carreira de sucesso — a de Dick mais que a da diretora, que se diga (e voltaremos a este ponto —, suas casas, seus compromissos sociais.
Kirsten, por óbvio, percebe todas as restrições a que Dick é submetido pelo Alzheimer. É nítido que ele, por ironia um psiquiatra renomado, sofre todos os flagelos da síndrome, que avança sem trégua. Dick é um paciente clássico, que não só não consegue se lembrar de acontecimentos frequentes em sua rotina, como uma conversa em que a filha lhe transmite algum recado ou lhe faz um esclarecimento acerca de determinada questão, mas também fica tediosamente repetitivo, tornando às velhas histórias de sua vida, boa parte delas ligadas ao casamento feliz com Catherine Joy, a Katie Jo. Em situações que tais, essas pessoas, já mortas, assumem a condição perniciosa de ainda serem capazes de suscitar no doente recordações vigorosas, que se confundem com a realidade e aprisionam-no com empenho redobrado num calabouço sufocante, ocupado por fantasia e realidade ao mesmo tempo, uma das perversidades características das doenças mentais.
Kirsten Johnson escolhe oscilar entre o drama sutil e a comédia mais rasgada, o que se configura num produto harmonioso do ponto de vista narrativo e esteticamente cativante. Sua coexistência com o pai, estreitada depois que ele é persuadido a fechar o consultório que manteve por mais de quatro décadas em Seattle e se mudar para a casa dela em Nova York, é marcada pela informalidade. Os dois deixam transparecer que são de fato amigos, que partilham de lembranças em comum e falam abertamente sobre todos os assuntos — ou melhor, quase todos. O filme não aborda, por exemplo, a extensão da influência religiosa na educação de Kirsten, criada numa família adventista (por coerção da mãe, ao que se depreende). Por motivos religiosos, a diretora fora desestimulada a seguir carreira no cinema, só passando a ter contato mais aproximado com o expediente fílmico depois de ingressa na Universidade Brown, em Providence, Rhode Island, no começo dos anos 1980. O documentário ignora, de forma involuntária ou deliberadamente, a discussão sobre em que a medida tal conduta pode ter implicado num possível desgaste da relação com os pais, mormente com Katie Jo, uma vez que seu vínculo com o pai viera a se tornar tão inquebrantável a ponto de lhe dedicar um filme. A esse propósito, Kirsten menciona a vida em comum ao lado da mãe sempre de modo oblíquo, sendo muito mais assíduos os elogios de Dick para a mulher que declarações afetuosas de Kirsten endereçadas a Katie Jo. Cada família tem mesmo seu modo próprio de ser infeliz.
A sequência em que o protagonista é mostrado como entrando no Paraíso, realizando seu desejo de se livrar de uma malformação congênita nos pés, é um dos respiros em que o enredo descamba para o humor escrachado, nonsense, que até tem sua graça, mas diminuta se comparada às tiradas de Dick, algumas mesmo sem intenção. Ao longo do filme, Dick se revela um personagem verdadeiramente inestimável, digno de ter sua trajetória eternizada pelas lentes de uma câmera. No princípio da trama, brincando com os netos em seu escritório doméstico, ele tece considerações filosóficas sobre a vida à luz da mosca que invadira o cômodo e, impertinente, resistia a morrer, e ao longo da trama, sugere uma relação entre comer bem e a vida como uma fonte inesgotável de gozo. Entretanto, a cereja sobre o bolo está no início da segunda metade do enredo, sem dúvida o ápice do filme. Ao se encontrar com Lolita, uma amiga cuja idade regula com a dele, os dois conversam, com uma sinceridade até embaraçosa para ouvidos mais sensíveis, sobre a morte ela mesma e a consequência do passar dos anos, a mais evidente — e a que abespinha mais, sobretudo a uma mulher — a decrepitude física, as “pelancas”, no linguajar direto de Lolita. Uma genuína aula de como enfrentar a velhice com a dignidade da autoaceitação, vencendo a paranoia da juventude eterna e a qualquer custo, ou melhor, à custa de preenchimentos nos lábios, paralisadores musculares, lipoaspirações e harmonizações faciais, que transformam todos em frankensteins irreconhecíveis até para si mesmos.
Kirsten Johnson sabe do mal-estar que provoca com “As Mortes de Dick Johnson”, condensado no trecho em que se encena a simulação do culto fúnebre do pai. O filme não é exatamente agradável, em especial num primeiro momento, quando não se está ainda familiarizado com a proposta da diretora, mas vencida essa resistência inicial, o espectador embarca numa jornada de autoconhecimento junto com ela e seu pai, ainda que o processo desencadeie alguma dor. Talvez um homem hoje um tanto fragilizado, que delegava à esposa mais responsabilidades que deveria, Dick Johnson faz um corajoso balanço de sua vida, ajudado pela filha que teve de matar o pai, metaforicamente, à luz da psicanálise de Sigmund Freud (1856-1936), para poder reverenciá-lo com toda a honestidade de sentimentos e o rigor intelectual imprescindível. A melhor forma que encontrara para dar-lhe as flores de sua homenagem enquanto ele ainda vive.