Maid: uma história de violência doméstica entre o desespero e desamparo

Maid: uma história de violência doméstica entre o desespero e desamparo

Isaiah Berlin diferencia a liberdade em duas formas: a positiva, que é a capacidade de se autodeterminar, e a negativa, referente à ausência de restrições. Ser livre “para” requer ser livre “de”. Sou livre para escolher o que comer se sou livre da fome. Mas, então, não seria desonestidade intelectual falar de escolha quando não há possibilidade de fuga? Porque, em certo sentido, não existe plano B para ser mulher. O simples fato de sê-la implica sofrer uma série de restrições. Olhares devoradores, inquisições tradicionalistas, imposição física, manipulação afetiva. Nada disso, entretanto, é provocado por um decreto divino ou cromossomial que estabeleça qualquer tipo de essência sexual, como a suposta natureza vaidosa, maternal e frágil da mulher. Desde ao menos Margaret Mead, há dados amplos que comprovam que o gênero é uma constituição social, tendo em vista a variedade comportamental, subordinada ao contexto, o que explicita sua natureza identitária. Logo, se há opressões crônicas, só é possível se ver livre de amarras por meio do reconhecimento de suas causas. “Maid”, novo sucesso da Netflix, é uma minissérie sobre a luta da mulher por liberdade. E sua grande contribuição para as questões de gênero não se encontra numa agenda política institucional ou cartazes em manifestações, mas sim na visibilização de como a violência é produzida e alimentada em situações dramaticamente corriqueiras.

Alex, uma jovem mãe, é casada com Sean e tem uma filhinha de 3 anos, chamada Maddy, com os quais mora num trailer. É madrugada quando Alex resolve sair de casa com Maddy. No mundo ideal, seria uma simples decisão. Acontece que no mundo ideal ninguém precisa fugir de casa. O motivo é uma tragédia compartilhada por uma a cada quatro mulheres no Brasil, a violência doméstica, matriz recorrente de outras manifestações de abuso, como o psicológico e patrimonial — o que também rola na série, mas sem spoiler. Ver-se livre dessas imposições não depende apenas de Alex: é preciso escapar do desabrigo, da fome, do desemprego, do desamparo afetivo. E, claro, dos julgamentos morais, inclusive os feitos sobre si mesma. Atolada de azar e privações, é nesse contexto que Alex vai trabalhar como faxineira na Value Maids, uma pequena empresa de empregadas domésticas. Um dos encantos da obra está no protagonismo de uma profissão historicamente associada às mulheres, frequentemente subalternizada, sem romantizá-la por meio de narrativas clichês de superação. Ao contrário, a precariedade das relações trabalhistas e os perrengues aos quais Alex tem que se sujeitar são a chave da trama, simbolizados de maneira brilhante pelas contas mentais projetadas na tela, já que a grana era super escassa, pois são essas experiências que a motivam a escrever em diários sobre as casas em que trabalhou, ponto central do enredo. Diga-se de passagem, “Maid” é baseada no livro de relatos autobiográficos de Stephanie Land, produzido nesse contexto de busca por dias melhores.

Imagine-se uma mulher pobre, mãe de uma criança pequena, temerária pelas agressões. Você precisa de coragem, mas também de itens básicos de sobrevivência, assim como tempo para dar atenção e carinho à filha. Ao sair de casa sem um tostão, quem você procuraria? Haver uma rede de apoio é fundamental. A procura mais óbvia, decerto, é de amigos e familiares. Todavia, o que Alex encontra é o desafio de enfrentar a relativização do machismo, sobretudo pelo descrédito diante de uma denúncia de violência que não ocorre na pele. Outro ponto abordado no drama é o pacto masculino de silêncio e não-reconhecimento diante de violências naturalizadas, mesmo no caso de pessoas que aparentemente se importam de forma genuína.

“Maid” se esquiva de soluções fáceis. Talvez por ser baseada na realidade e essa ter se incumbido disso. Há uma enorme sensibilidade para criar cenários intermediários, em que os personagens são ambivalentes. Solidariedade, indiferença e abuso, tudo ali, truncado. Afinal, no mundo real, as pessoas são incoerentes mesmo. Dois pontos de destaque a esse respeito: o primeiro é o próprio Sean, ex-marido de Alex, que apresenta várias camadas. Em muitas passagens, ele demonstra apego e empatia, não só à filha, mas para com Alex, e não por dissimulação. Dentro de uma perspectiva de defesa da vida da mulher, claro, nada disso abona seus erros. Embora o álcool potencialize o comportamento dominante abusivo do personagem, fator nevrálgico para o ciclo de violência, o roteiro não responsabiliza a bebida, o que deporia contra a complexidade da série. A mensagem é que Sean poderia ser seu amigo ou genro e você deveria fazer algo por Alex.

Um exemplo da complexidade de “Maid” está nos múltiplos sentimentos que Paula, mãe de Alex, desperta no espectador. Angústia, pena, ternura e ranço. Ok, talvez um pouco de preguiça também. Interpretada magistralmente por Andie MacDowell, a personagem é uma artista defensora, digamos, de uma sociedade alternativa, mas que mesmo assim reproduz o que estudiosas feministas como Helena Saffioti chamam de esquemas de gênero. Por maior que seja a pretensão de ter uma visão artística de vanguarda envolta por um quê de anarquismo, ironicamente, vítima de violências simbólicas, Paula é uma mulher bastante vulnerável ao machismo.

Poucas cenas são tão agudas quanto a metáfora do poço. Ela é o retrato da sensação de desamparo, argumento maior do enredo. Porque essa é a grande questão do combate à violência de gênero: ser livre para escolher demanda ver-se livre da violência doméstica. E isso não é meramente uma decisão individual, é preciso uma rede de proteção. A despeito de toda dificuldade burocrática, “Maid” explicita a relevância de programas sociais voltados para a assistência, bem como medidas protetivas do Estado. Também aponta para a relevância do fortalecimento de espaços que valorizem o papel terapêutico da fala na busca de compreensão dos traumas e compartilhamentos de experiências com outras sobreviventes da violência doméstica.

Por possuir outro nível de complexidade e menor apelo imagético do que Round 6 — mesmo com uma fotografia impecável —, sua repercussão é menor, mas, para mim, foi a série de 2021 da Netflix. Isso é, a menos que lancem mais um spin-off de “Breaking Bad”. Promove conscientização sobre um tema sensível sem se valer de uma militância excessivamente didática. Não demoniza a figura masculina, nem superestima a solidariedade entre mulheres e, portanto, não reproduz uma nova forma de essencialismo de gênero (“homem é sempre assim, mulher é sempre assado”), mas condena o patriarcado em si. Ao deixar claro que se trata de um problema estrutural das relações, não fulaniza o problema, embora também não esvaia a necessidade de responsabilização de quem promove atos de violência.

“Maid” é uma história sobre muitas histórias. Da sua mãe, irmã, namorada, amiga. Tua. Talvez você não suspeite. Talvez não assuma. Livre de privações, com muito suor pessoal, mas também amparo de políticas públicas, Alex vive um ponto de virada para escolher o que fazer da vida. Isso é, relativamente, já que o patriarcado continua aí. Uma lição grandiosa sobre caminhos para não jogarmos mais a violência para debaixo do tapete.