O drama comovente e quase perfeito escondido na Netflix Divulgação / The Orchard

O drama comovente e quase perfeito escondido na Netflix

Buscando retratar a jornada de um homem por redenção, ávido por se refazer, depois de ter metade da vida desperdiçada na cadeia, pagando por um crime que não cometeu, “Outside In”, imprime um estilo próprio quanto a contar uma história nada especial.

Sutileza é a palavra exata para definir o drama da diretora Lynn Shelton (1965-2020) sobre Chris, vivido com toda a dignidade por um Jay Duplass no esplendor de sua forma. Aos 38 anos, agora fora do cárcere, o protagonista do filme, que ganhou as telas americanas em 30 de março de 2018, regressa à sua Granite Falls natal depois de duas décadas preso. A sequência inicial, em que Chris é visto comendo batatas fritas enquanto aprecia a paisagem que se lhe desenha fora do carro no caminho de volta — decerto a vislumbrar que espécie de futuro poderia ter doravante, mas ainda assim denotando uma expressão de alento —, já deixa o público avisado quanto ao que pode esperar de “Outside In” (“perspectiva”, numa tradução livre). Alguns quadros depois, já começando a se ambientar o quanto poderia à nova realidade, o personagem de Duplass aparece andando de bicicleta, redescobrindo os mínimos prazeres da vida em liberdade, ao passo que se deixa remeter ao seu dia a dia de 20 anos antes, quando era ainda pouco mais que um garoto, em todos os sentidos inocente, antes de ser atropelado pela vida.

A verdade sobre o crime pelo qual Chris acabou atrás das grades nunca vem à tona, mas o roteiro faz questão de deixar claro que ele é  mesmo inocente e “só” estava no lugar errado, na hora errada, da mesma forma que o protagonista de “Monstro”, também lançado em 2018, dirigido por Anthony Mandler — e os argumentos de ambas as produções são, a propósito, impressionantemente similares. Tanto no filme de Mandler como no trabalho de Shelton, o personagem central, o típico mocinho com ganas de fazer a diferença no meio em que vive, se permite enredar pela influência perversa de alguém que se diz seu amigo. Nas duas tramas, trata-se de um assalto à mão armada, a uma mercearia. Talvez o (único) pormenor em desalinho seja “Monstro” se passar em uma cidade grande, NovaYork, e “Outside In” se basear em uma cidadezinha na costa nordeste dos Estados Unidos, no extremo oposto do país. Talvez algum dia se esclareça a razão de tantas coincidências — possibilidade o seu tanto abreviada, uma vez que a diretora do filme estrelado por Jay Duplass, que coassina o roteiro com ela, morreu precocemente, de leucemia mieloide aguda, em 16 de maio de 2020, aos 54 anos.

Os obstáculos para que Chris reassuma efetivamente o leme de sua vida vão tomando corpo de modo assustador. Tudo para ele é novidade e fica patente seu desconforto com o mundo que o cerca, um mundo que mudou, que evoluiu sem a sua participação e que agora é-lhe um completo estranho. Ele não consegue realizar tarefas simples ao computador, não sabe se o próprio telefone é capaz de enviar e receber mensagens e, claro, tem toda a sorte de apuro financeiro, sendo obrigado a morar de favor num anexo à casa do irmão Ted, de Ben Schwartz, por quem desenvolve uma repulsa crescente e indominável. Ted é o verdadeiro autor do crime de 20 anos atrás, cometido com a ajuda de um amigo dos dois, e passara essas duas décadas fazendo visitas apenas esporádicas ao irmão, sendo menos negligente que a própria mãe dos dois — que nunca foi vê-lo, não se incomodou em tomar parte na recepção de boas-vindas organizada para celebrar sua soltura, mas lhe manda dinheiro, junto com as cartas que Chris dispensa sem ler. A única coisa que o impede de chutar o balde, dessa vez conscientemente, é Carol, sua antiga professora de inglês do ensino médio, singularmente empenhada em sua defesa. A partir desse momento, o filme ganha relevo, graças justamente a Edie Falco, cujos carisma e talento roubam a cena — e tornam a vida de Duplass, limitado dramaticamente, apesar da performance regular, um bocado mais difícil. O alinhamento dos personagens acontece, a despeito dele e por causa dela, que passa a levar o filme nas costas.

Fora a professora quem se preocupou em telefonar para Chris semanalmente, mandar-lhe lições e, o mais importante, estudar cada vírgula de seu processo, expediente fundamental quanto a abreviar a duração da pena. Shelton insinua uma hipótese interessante acerca do relacionamento entre Carol e seu ex-aluno. Em algum momento da narrativa, não retratado no filme, a professora pode ter se apaixonado por Chris, mas o sentimento acabara por esfriar; Chris pode não estar mais enamorado de Carol, apenas confuso por uma mistura insalubre de bons sentimentos, que quando juntos resulta numa gororoba intragável. Amor não se compara à gratidão, que por sua vez não tem nada a ver com amizade. De sua parte, Carol não é a pessoa mais bem-resolvida do mundo, nem de Granite Falls. A personagem de Falco se desdobra para preservar um casamento que sabe falido, enquanto não consegue se entender com Hildy, a filha adolescente e temperamental, interpretada por uma Kaitlyn Dever graciosa, bastante confortável no papel. Chris representa para a professora, vinte anos mais velha, a promessa de alguma felicidade. Mas uma mulher na sua idade não pode se contentar com promessas inconsequentes.

Um dos elementos técnicos que adquirem vulto à medida que a história se adianta é a fotografia, comandada com desenvoltura especial por Nathan M. Miller. No filme, a câmera está sempre perto da cena, a fim de garantir que a audiência não perca nenhum detalhe do que o texto não permite demonstrar, a exemplo da atmosfera sempre carregada de Granite Falls, um lugarejo especialmente chuvoso, em que as relações humanas parecem espelhar o mau humor crônico do tempo.

O desfecho de “Outside In” indica que, apesar da inegável tensão sexual e de se gostarem para além da cama, Carol e Chris não se tornam um casal. História de amor plena de seus tantos desajustes, o filme prefere se ater à sugestão de que a vida seguiu seu curso habitual — e quiçá Chris seja capaz de algum dia retribuir todo o bem que sua ex-professora e ex-namorada platônica lhe fez. O sentimento amoroso pode ser, além de ridículo, perverso.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.