Espaço majoritariamente masculino ao longo dos anos, a literatura foi uma conquista dos homens não por sermos mais capazes, mais talentosos, mais intelectualmente dotados ou mais sensíveis. O esvaziamento do cenário feminino na literatura — em relação à presença dos homens, frise-se — se deveu a uma espécie de contrato social à moda do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que, tacitamente, relegava às mulheres o papel exclusivo de donas-de-casa, aceito de bom grado por muitas, mas justificadamente considerado pouco para outras tantas. Houve, claro, as que se atreveram a desempenhar atividades intelectuais, malgrado fossem vistas como criminosas abjetas; na verdade, as que passaram a um lugar de vulto na história foram, sim, anatematizadas no princípio, mas de uma ou outra maneira, se fizeram conhecer, respeitar, admirar. Essa postura ignominiosa das sociedades ditas modernas vigorou até as raias do século 20, quando as que ousassem sonhar com uma carreira na literatura sofriam a dura reprimenda do meio em que viviam, também por serem encaradas como usurpadoras do lugar do homem. A desvantagem imposta às mulheres, obviamente, foi a maior culpada por sua produção reduzida se colocada em paralelo à de autores homens. Ainda hoje. Erroneamente, homens são tidos por essa razão como escritores cuja literatura desfruta de padrão de qualidade superior.
O destaque conseguido por literatas nos séculos 19 e 20, a exemplo de Emily Brontë (1818-1848), autora de “O Morro dos Ventos Uivantes” (1847), ou Agatha Christie (1890-1976), que na prática inventou o romance policial da forma como se faz ainda hoje, é inquestionavelmente raro, circunstância que foi se invertendo, graças à persistência de mulheres que se sabiam determinadas o bastante a fim de competir em igualdade com seus colegas barbados, uma vez que apenas talento não era suficiente. Emily Brontë, Agatha Christie, e mais Mary Shelley (1797-1851), Virginia Woolf (1882-1941), Simone de Beauvoir (1908-1986) e Florbela Espanca (1894-1930), todas europeias, abriram passagem para que no restante do globo outros livros viessem à luz pelas mãos de uma mulher. No Brasil, tivemos e ainda temos nomes que não deixam nada a dever às escritoras do Velho Mundo, conforme se impôs o gênio de Rachel de Queiroz (1903-2003), Cecília Meireles (1901-1964), Clarice Lispector (1920-1977), Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e tantas mais, desbravadoras de sendas antes tomadas pela mata cerrada da boçalidade e do preconceito mais infundado.
Baseamo-nos nesses grandes momentos da literatura nacional para compor uma lista com dez publicações para se conhecer verdadeiramente a relevância da mulher na literatura nacional, desde a veterana Marilene Felinto, figurinha carimbada na imprensa de viés ultraesquerdista, de “As Mulheres de Tijucopapo” (1982), à oxigenação sempre bem-vinda proposta por trabalhos como “Suíte Tóquio (2020), de Giovana Madalosso. Os livros aparecem do mais recente para o lançado há mais tempo, sem cotações quanto à qualidade do enredo.
Conhecida pela prosa ágil e objetiva, Ana Paula Maia, agraciada por duas vezes consecutivas com o Prêmio São Paulo de Literatura — em 2018, pelo livro “Assim na Terra como Embaixo da Terra”, e em 2019, por “Enterre Seus Mortos” —, apresenta em “De Cada Quinhentos uma Alma” a vida de Edgar Wilson, que trabalha recolhendo bichos mortos. É ele quem leva as carcaças até um grande depósito onde um triturador reduz os animais a nacos de carne e fragmentos de osso. Wilson, como uma válvula de escape, roda pelas estradas, junto com Bronco Gil e o ex-padre Tomás, a fim de verificar quanta desordem pode haver na vida real, aproveitando para contestar tudo o que lembre o sistema estabelecido e quem dele se beneficia.
Logo nos primeiros trechos de “Suíte Tóquio”, o leitor é tragado pela narrativa dinâmica do romance de Giovana Madalosso. A ação progride oscilando num eterno avançar e retroceder, à medida que se destrincha o enredo, centrado em duas personagens femininas, cujos papéis têm igual peso na história. A relação entre uma babá e sua patroa, argumento de que surge uma miríade de pequenas subtramas, é trampolim para que Madalosso abranja assuntos incômodos, mas com sutileza. A autora erige duas figuras que, por meio de suas trajetórias pessoais e problemas íntimos, direcionam o olhar do público para sua própria vida: a babá expõe sua visão de mundo a partir da condição de uma trabalhadora subalterna e menosprezada; já a patroa se revela de maneira completamente diversa, as duas vítimas de conflitos, tristezas, dependências emocionais.
O mundo, o Brasil e o Rio de Janeiro mudaram tanto que, por mais fantasiosa que a história soe, Ipanema — bairro da Zona Sul carioca hoje tomado por prédios, altos e baixos, alguns dotados de apartamentos cujo metro quadrado supera facilmente os cem mil reais — já teve um castelo, construído a pedido de Johan Edward Jansson, cônsul sueco que chegou ao país com a mulher, que convalescia de uma doença. Nas imediações do terreno que hoje abriga a Casa de Cultura Laura Alvim, no começo da avenida Vieira Souto, o prédio foi colocado abaixo no raiar da década de 1960 e hoje, claro, não se conhecem todos os detalhes necessários sobre o caso. Evidenciando o desmonte cultural que acomete o Brasil desde sempre, a recifense Martha Batalha, radicada no Rio e atualmente vivendo nos Estados Unidos, escreve seu segundo romance, justamente tendo os Jansson por pano de fundo, para narrar os rumos e descaminhos da classe média brasileira ao longo de quase um século.
Quando assuntos como tráfico de drogas e consumo de maconha vêm à baila, a imaginação do leitor brasileiro rapidamente o conduz a uma realidade em nada semelhante ao cenário pintado por Carol Bensimon em “O Clube dos Jardineiros de Fumaça”. No livro, a escritora gaúcha — vencedora do Prêmio Jabuti 2018 na categoria Romance — nos introduz a Arthur, um professor de ensino médio que resolve se mudar de Porto Alegre e vai viver no condado de Mendocino, na Califórnia, aspirando a trabalhar em uma das plantações ilícitas de cânhamo, matéria-prima da maconha, abundantes na região.
Já consagrada na carreira diante das câmeras e sobre a ribalta, Fernanda Torres, uma das atrizes mais talentosas do Brasil e prestes a completar 50 anos, deixou o público boquiaberto e o mercado editorial bem satisfeito ao estrear como escritora, em novembro de 2013. “Fim”, seu primeiro romance, editado pela Companhia das Letras, se desenrola sobre um grupo de amigos que chega à meia-idade cheios das inquietações tão próprias desse momento da vida, em que as alegrias fugazes da juventude perdem cada vez mais espaço para o peso das frustrações e da incerteza da velhice. Com o livro, Fernanda teve a oportunidade de se provar também capaz de narrar uma história a partir do campo oposto em que sempre operara. “Fim” se saiu tão bem que foi classificado como um dos finalistas do Prêmio Jabuti de 2014, o mais conceituado do país. Imediatamente um best-seller em todo o território nacional, o livro chegou ao posto de oitava obra de ficção mais vendida do Brasil. A novela já contabiliza mais de cem mil exemplares comercializados, mostrando que a autora Fernanda Torres veio para ficar.
Cintia Moscovich fascina o leitor com narrativas curtas sobre abandono familiar, luto e solidão, graças à forma que escolhe para encaminhar suas histórias. Valendo-se de palavras suaves, elencadas com delicadeza, Moscovich acolhe o público, malgrado os contos de “Essa Coisa Brilhante que é a Chuva” se fundamentem sempre em aspectos espinhosos, protagonizados por personagens em agonia. A autora, mediante uma prosa fluida, que brota sem nenhum esforço, domina um jeito muito próprio de chegar ao coração de quem a lê, sem ter de apelar a enredos artificialmente fantasiosos ou aos que retratam escândalos para levar uma história até o desfecho, e o público embarca com ela. Em se chegando ao fim, ninguém pode se dizer o mesmo; o saldo da leitura de “Essa Coisa Brilhante que é a Chuva” é uma reflexão profunda sobre a vida e seus mistérios, por meio dos quais conhecemos mais de nós mesmos e nos tornamos mais capazes de conhecer o próximo.
Por meio da pena inspiradora de Maria José Silveira, o leitor é convidado a acompanhar o ciclo natural da vida, feito de nascimentos e mortes, a mesma vida que se reinventa ao passo que uma geração sucede outra, compondo um verdadeiro balé cronológico. Em cada capítulo de “A Mãe da Mãe de sua Mãe e Suas Filhas”, a autora se devota a falar um pouco mais sobre a mulher em questão. Conta de seus amores, aspirações, tragédias pessoais, dias de conquistas e de tormentos, das violências de que é vítima ou as que sujeita aos outros, sendo até possível vislumbrar os vácuos emocionais da personagem. Maria José Silveira tem o talento raro de tomar pela mão o leitor, fazê-lo penetrar o nevoeiro da lembrança, e mesmo que se perca um pouco, suscitar nele um sentimento que ainda não tivera.
A cearense Ana Miranda, autora experimentada no árido cenário da literatura brasileira — e, em especial, do Nordeste —, tem o condão de reinventar em “Boca do Inferno”, lançado em 1989, a Bahia do século 17, mais precisamente de 1683. O romance se esmera por assinalar a corrupção presente em amplo sentido na sociedade baiana de então, nos costumes, nas artes e, claro, na política. É uma característica pujante na obra o emprego de vocábulos e termos de baixo calão, no justo intuito de espinafrar os poderosos e quem deles se locupleta, de tal ou qual maneira, bem à moda do poeta satírico Gregório de Matos (1636-1696), o Boca do Inferno, um dos personagens centrais do livro.
Marilene Felinto tinha 25 anos quando começou a esboçar a ideia central de “As Mulheres de Tijucopapo”, em 1982. Na trama, Rísia, a narradora-protagonista, esmiúça sua volta ao povoado de Tijucopapo, lugarejo inventado por Felinto que remonta a Tejucupapo, Pernambuco, fundamental para se entender a história do Brasil. No século 17, a vila presenciou o embate entre mulheres da região e holandeses, tomados pela sanha de pilhar o estado. Entre as coisas que não são ditas, se encontram os rudimentos do feminismo e da militância antirracista no Brasil, dando ênfase ao fluxo de consciência dos personagens, que mesmo fictícios, se investem de relevância histórica ao jogar luz sobre as incoerências tão próprias ao nosso povo, predominantemente miscigenado e ao mesmo tempo preconceituoso, alienado, confortável em sua posição de mero repetidor dos costumes dos outros — dos europeus, há 400 anos; dos americanos, hoje. Em resenha quando da divulgação de “As Mulheres de Tijucopapo”, a poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983), realçou o aspecto autobiográfico da narrativa, feita de “ziguezagues, de desníveis”, como a fala do nordestino (e do pernambucano em particular).