Maid e Round 6 mostram que o mundo é para poucos

Maid e Round 6 mostram que o mundo é para poucos

Uma das ilusões modernas mais consolidadas é a ideia de que, ao longo do tempo, o capitalismo inclui mais e mais pessoas em padrões elevados de bem-estar e consumo. Se fizer a lição de casa, uma pessoa ou um país vai ser recompensado com a prosperidade, diz a propaganda. Contra essa fantasia, as séries “Maid” e “Round 6” apresentam, cada qual a sua maneira, que o mundo, na verdade, é feito para poucos. Apenas um grupo muito restrito pode alcançar o que se promete na economia de mercado.

Estreantes na Netflix, as duas séries provocaram reações díspares. A história da faxineira Alex (interpretada por Margaret Qualley) estimula o sentimento da compaixão, ao exibir o ponto de vista de uma excluída do sistema nos Estados Unidos. São cenas duras do que Barbara Ehrenreich chamou de “miséria à americana” na década de 1990, o imenso mercado de empregos com salário-mínimo. Por outro lado, os coreanos endividados se metem num jogo repulsivo e assustador de sobrevivência.

“Maid” tem paralelos com o realismo dos filmes recentes de Ken Loach, como “Eu, Daniel Blake” (2016) e “Você não Estava Aqui” (2019). Empregos precários, desamparo pessoal, sistemas de assistência social caindo aos pedaços, eis a realidade da economia pós-crise financeira de 2009 nos países mais riscos do mundo. As narrativas focam os dramas de quem precisa inventar formas de sobrevivência, e a burocracia estatal é um pesadelo que leva as pessoas a lutar e a sofrer muito.

A jornada de Alex é a busca de condições para ter uma vida independente, após a separação do marido alcoólatra que a ameaça constantemente de violência física. O enredo está centrado na dificuldade dela em conseguir dinheiro, abrigo para morar, e assim ficar junto da filha Maddy. O pano de fundo da série é a sociedade mergulhada nas ideias de austeridade econômica. Não se pode gastar mais do que se ganha, diz o mantra; as pessoas somente podem se endividar para viver.

Uma das sequências mais fortes de “Maid” mostra Alex andando pela casa luxuosa onde está fazendo uma faxina. O passeio expõe o contraste entre desejo e realidade. Ela entra num quarto de criança, vê que aquilo é o sonho para sua filha e pergunta à dona da casa sobre a criança que dorme ali. A mulher responde: aquele cômodo todo arrumado e equipado serve apenas de showroom para interessados em comprar a residência. Não há crianças na casa. Aparece na tela a ilusão concreta do que Alex jamais vai alcançar.

Morte a crédito   

“Round 6” se passa em Seul, capital da Coreia do Sul. O país é o exemplo admirado e citado por políticos conservadores do mundo inteiro, devido aos sinais exterior de prosperidade e ao mito de disciplina escolar. O que a série retrata (assim como o premiado filme “Parasita”), no entanto, é uma sociedade fraturada de cima a baixo e caindo num abismo aterrador. Ficou apenas nos discursos e nas imagens de propaganda política a narrativa de uma nação que serve de modelo global.

O protagonista Seong Gi-Hun (interpretado por Lee Jung‑jae) é um antigo operário da indústria automobilística. Perdeu o emprego num dos muitos processos de reestruturação produtiva, virou empreendedor do comércio e faliu. Ele fez a saga dos trabalhadores de vários países a partir dos anos 1970. Em outras palavras, é um personagem típico da globalização. Qual a situação dele no presente da série? Um sujeito tão desamparado quanto a Alex de “Maid”, porém superendividado.

Em alguns momentos, “Round 6” poderia também ser um filme de Ken Loach. No caso, o mote narrativo é a dívida, essa entidade mítica da globalização e que desemboca na austeridade. Algo que Anselm Jappe chamou de “crédito à morte” e Wolfgang Streeck, de “tempo comprado”. Um empréstimo é, na maioria dos casos, a forma de dar sobrevida ou adiar a derrocada final de uma pessoa, uma empresa e um país. Compra-se um tempo a mais com o crédito em dinheiro — até que os credores fechem o cofre.

O horror de “Round 6” é a solução oferecida aos personagens endividados: um jogo mortal. Quem chegar ao final da disputa, receberá o sonhado do dinheiro para quitar a dívida e, quem sabe, ficar com umas sobras. O cenário do jogo é uma ilha, toda colorida excessivamente e artificial. Aos poucos, o ambiente vai se revelando: as camas lembram as de um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial. E mais importante: a disputa tem regras estritas, e quem desobedecer é fuzilado.

Neste último ponto, o jogo da série se aproxima da essência do campo nazista. O “lager”, como o de Auschwitz, tinha normas que mudavam a cada dia. O prisioneiro nunca sabia o que estava ou não valendo. É uma imensa zorra de regras de conduta, decididas ao sabor do momento dos guardas. Exatamente como se vê em “Round 6”. Outra coincidência é a famosa boneca que dispara balas de fogo pelos olhos. Ela é o “panóptico” de Michel Foucault, a torre para vigiar e punir, também usada nos campos alemães.

Os criadores de “Round 6” deixam essas pistas com referências múltiplas — incluindo a valsa “Danúbio Azul”, de Strauss, que remete à trilha do filme “Laranja Mecânica”, o clássico da ultraviolência. Pode parecer uma réplica de reality show de televisão, cujo objetivo único é sobreviver a um monte de testes físicos e psicologicamente humilhantes. No fundo, a série coreana é a velha luta pelo emprego em um mundo que não consegue e já desistiu de incluir bilhões de pessoas às promessas do capitalismo.