Com o poder de legar ao público um trabalho de fôlego sobre diversidade cultural, choque de civilizações e a própria função do cinema de registrar o fenômeno de forma abrangente, imparcial e, claro, conferindo-lhe aura de bom entretenimento, “Ya No Estoy Aqui”, cuja estreia já remonta a um pálido 2019, é um monumento fílmico à memória latina. Na história, que conta com roteiro e direção do mexicano Fernando Frías de la Parra, o protagonista, um garoto colombiano de 17 anos, não é nenhum personagem de Homero, mas também tem sua “Odisseia”. Ulises está em busca de sua própria jornada, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descoberta do mundo, honra e afirmação de si mesmo.
Ulises, como qualquer adolescente em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso do personagem de Juan Daniel García Treviño — destaque à parte em “Ya No Estoy Aqui”, dado seu desempenho assustadoramente espontâneo —, o moleque é um digno representante da cultura regional hispânico-latina, e da Colômbia com ainda mais força. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, que se distingue da matriz graças às variações de tempo. Ulises, como muitos garotos da sua idade, anda em companhia de amigos de índole duvidosa, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. A partir desse turning point, De la Parra exibe uma outra faceta de seu anti-herói.
Ulises tem como único meio de sobrevida dançar numa estação de metrô no Queens, bairro do lado oeste de Nova York, conhecido por abrigar imigrantes asiáticos, irlandeses, eslavos e, claro, os latinos. Uma das grandes conquistas do dançarino amador é se fazer notar por Lin — vivida por Angelina Chen, igualmente orgânica em sua passagem pela trama, outra grata surpresa —, garota sino-americana que se interessa por sua figura exótica, mas algo sedutora, também ela uma intrusa no mundinho abafado da América, mas que não é correspondida em suas intenções porque Ulises não fala inglês, e tampouco ela entende espanhol. Um amor impossível, ainda que Ulises esteja mais interessado, na verdade, em garantir o pouso na água-furtada da casa de Lin, que lhe cobra pelo favor apenas uns instantes efêmeros de atenção.
O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, enquadramentos quase sempre muito abertos, tudo friamente pensado a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos do subcontinente pela ótica do oprimido, sem se permitir contemporizações ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. O personagem oscila entre a atmosfera de anti-herói e a do mocinho clássico, e a forma como o diretor conduz o filme a partir de então.
O diretor não tem a intenção de realizar julgamentos, o que banalizaria o conflito. Ao escolher ressaltar o êxodo dramático do meio físico para o psicológico em “Ya No Estoy Aqui”, De la Parra evidencia o modo como Ulises enxerga sua própria realidade, melancólica e mesmo cruel. Obra de arte que, voluntariamente ou não, se funde ao propósito de testamentar o problema sociológico por trás de seu enredo, o filme encarrega o público quanto a absolver ou condenar as atitudes delituosas do protagonista antes de sua conversão mandatória de vida.
Frise-se uma vez mais o total domínio de Treviño sobre o personagem, que nunca resvala para o melodrama, mérito em igual proporção do diretor, por evidente — e esse é outro predicado ilustre do filme. A mudança a que Ulises se submete, forçada, mas necessária (e, por isso, assimilada logo), decerto é o que se mostra mais revelador em “Ya No Estoy Aqui”, uma história de sonhos. Mas de sonhos reais.