Talvez filmes de guerra sigam encantando o público por seu caráter realista, em que por meio de um fato histórico — e nem faz tanto tempo assim —, se conhece um pouco mais a fragilidade do gênero humano, sempre envolto em disputas de poder. Esse é um dos trunfos de “A Batalha Esquecida”.
A fim de tornar-se senhor do mundo e de todas as criaturas que o habitam, o homem teve de se impor. Começou por subjugar os bichos que considerou dóceis, e os fez trabalharem para si. Em seguida, para vencer as tantas feras que ameaçavam sua integridade física por muito mais bravias e corpulentas do que ele múltiplas vezes, criou instrumentos como tacões, lanças e fundas e, assim, estendeu seus territórios. A próxima etapa foi dominar o fogo, desenvolver a pólvora e a sorte do gênero humano estava dada: a guerra. Em “Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2011, o historiador israelense Yuval Noah Harari defende que o homo sapiens só subiu tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais prosaicos, como os melhores bosques da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem correr o risco de morrermos intoxicados, por exemplo. E esse conhecimento sobre tudo o que existe de relevante, impossível aos outros animais, não seria nada se não viesse acompanhado do aprimoramento da força bruta.
Queira-se ou não, foi por meio de combates armados que conquistamos o que temos. Proclamar guerra contra quem quer que seja nunca é uma resolução que se toma da mão para a boca, mas é, em muitas circunstâncias, a única coisa a se fazer para fugir da desonra, que, conforme ensina Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se encarniça de um povo que não encampa as causas pelas quais se deve combater. Quase sempre, foi por meio dos enfrentamentos entre forças inimigas que a humanidade viu nascer seus grandes heróis, homens e mulheres que se vestiram da aura de personalidade da história graças a um desempenho de coragem memorável ao longo de uma série interminável de batalhas.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), fundada na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, para mediar conflitos armados e ajudar em possíveis negociações de paz, há 30 zonas de guerra no mundo hoje, na maioria dos casos disputas de território provocadas por desavenças religiosas, tentativas de subjugação de uma etnia sobre outra ou a afirmação da soberania acerca de recursos naturais. A ação política também dá o tom da guerra ao fomentar diferenças quanto ao entendimento da constituição própria de um povo. Movimentos separatistas no Canadá, na Catalunha e na Irlanda do Norte se arrastam até hoje, deixando um rastro de violência, atraso e empobrecimento econômico em alguma medida. A ONU bem que tenta, mas o fardo é penoso, mesmo para ela. A guerra é, em muitas ocasiões, o último — e único — recurso, mas cobra seu preço.
No que concerne à Holanda, a participação do país na Segunda Guerra fica menos obscura graças ao filme do diretor holandês Matthijs van Heijningen Jr. Lançado em 2020, uma das produções cuja estreia se deu na esteira da pandemia de covid-19, “A Batalha Esquecida”, como “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan, também se debruça sobre um episódio pouco documentado e ainda menos esclarecido acerca da sequência de enfrentamentos armados que deixaram marcas profundas na história recente do homem, dado o tempo por que se estenderam. Ao longo de sete anos, Eixo e Aliados se bateram numa guerra que parecia fadada à eternidade, mas para a qual, felizmente, vislumbrou-se uma chance palpável de definição positiva a partir de 6 de junho de 1944, com a invasão da Normandia, no norte da França. A Operação Overlord, ou Operação Netuno, mais conhecida como o Dia D, foi o maior ataque por mar a um país inimigo da história. A manobra deu início à libertação de imensas áreas ocupadas ao longo do noroeste Europeu, sob controle dos alemães, e foi o que de fato, na prática, tornou crível a vitória dos Aliados na Frente Ocidental. Com a empreitada corajosa dos Aliados — capitaneados por Estados Unidos, Reino Unido e França, mas representados no evento por 24 mil soldados americanos, britânicos e canadenses que entraram em combate pouco depois da meia-noite —, Hitler, enfim, pagaria pela humilhação a que submeteu o exército aliado em Dunquerque em maio de 1940, quando encurralara quase 400 mil homens do efetivo antinazista numa praia também no norte francês. Agora, era ele a presa, e os aliados, remoendo quatro anos de opróbrio, não deixariam barato a ousadia.
No introito do filme, a audiência é apresentada, de maneira didática — até excessivamente didática — a uma arte na qual se vê um mapa. Por meio dessa representação gráfica, quem assiste tem uma noção mais clara a respeito dos conflitos para libertar Antuérpia, a maior cidade da região da Flandres, na Bélgica, no estuário do rio Escalda, por onde desembarcaram as tropas que expulsariam as tropas de Adolf Hitler (1889-1945) da Holanda, um dos marcos do término da guerra. Soldados do Canadá começam a tomar territórios antes dominados por Hitler na Holanda, fazendo com que as tropas nazistas ficassem sem alternativa a não ser renderem-se. A operação, todavia, foi complexa, uma vez que os guerreiros aliados canadenses não conseguiram penetrar na Antuérpia tão fácil.
“A Batalha Esquecida” mistura de propósito trechos extremamente verossímeis com passagens ficcionais, que servem a retratar os tantos dramas íntimos de personagens até hoje sem rosto para a história. A fim de evitar incoerências narrativas, muito prováveis num enredo com as características da trama, Van Heijningen Jr. escolheu rodar o filme na Lituânia, onde ainda há cenários com poder de sugestão vigorosos o bastante quanto a se fazer acreditar que se está mesmo diante de uma Europa em guerra, ainda em meados dos anos 1940.
O roteiro de Paula van der Oest impressiona pelo resgate de acontecimentos como os levados à tela em “O Resgate do Soldado Ryan” (1999), de Steven Spielberg. A visão feminina sobre a guerra — essa uma das genuínas novidades em “A Batalha Esquecida”, uma vez que produções dos Países Baixos voltadas ao gênero são, em alguma medida, frequentes, como se denota em “O Banqueiro da Resistência” (2018), de Joram Lürsen, e “Riphagen” (2016), dirigido por Pieter Kuijpers — confere ao filme o devido frescor. Van der Oest apresenta um trabalho inventivo ao mesmo tempo em que preserva a natureza documental do que tem em mãos. O resultado é uma história delicada, sem deixar de ser forte, em que prevalecem aspectos invisíveis a olho nu para diretores homens de gênio, como a sutileza ao desenvolver os elementos conflituosos da relação entre um jovem holandês, simpatizante da causa aliada, que se esconde a fim de não ser convocado a lutar pelo lado dos nazistas — no que é ajudado pelo pai, Visser, o médico mais experiente das redondezas, vivido pelo belga Jan Bijvoet. Visser arrisca tudo pelo filho, mas seu amor de pai e o empenho por salvá-lo parecem insignificantes frente à barbárie abominável de uma guerra.
“A Batalha Esquecida” é mais uma das tantas e tão lindas peças que acusam o horror por trás de homens que se levantam em armas uns contra os outros, seja em que contexto for. E uma homenagem a quem, valendo-se de suas fraquezas, soube ser invencível.