Crises econômicas são um perigo. Elas poupam apenas os muito ricos, que eventualmente até lucram com os processos inflacionários. Contudo, as mais sérias empobrecem a classe média e tornam os pobres miseráveis, e quando isso acontece podem aflorar os instintos mais atávicos da sociedade, associados à sobrevivência. Por isso as crises econômicas constituem um gatilho natural daqueles surtos irracionais que estimulam a intolerância coletiva, capazes de justificar a violência e até o assassinato em massa. Foi uma dessas crises econômicas que forneceu as condições para o surgimento do movimento nazista, na Alemanha, há 100 anos.
É por lembrar desse tipo de coisa que a História (ao lado da Filosofia e da Sociologia) é demonizada por grupos obscurantistas. Mas, diferentemente desses grupos obscurantistas, a História se baseia em fatos. E os fatos são os seguintes: o movimento nazista se aproveitou da crise econômica que atingiu a Alemanha no início dos anos 20 do século passado para conquistar o poder. O nazi-fascismo é produto do conluio de uma dezena de personalidades perturbadas, cuja maior expressão é Adolf Hitler, o mito adorado de Rudolf Hess. Fanatizado, Hess acreditava que o discurso de ódio de Hitler poderia, em consonância com a visão do místico Dietrich Eckart, empolgar as massas e regenerar a República Democrática de Weimar (1919-1933).
Mas a população alemã não levou o desajustado Hitler a sério até 1929, quando a bolsa de Nova York quebrou e a economia mundial veio abaixo, incluindo a economia da Alemanha social-democrata, daquele período. Em 1923 o partido nazista tentara o golpe de Estado em Munique, com o apoio dos paramilitares da SA (Sturmabteilung, ou “Destacamento Tempestade”), liderada por um miliciano profissional, Ernest Röhm. Mas o chamado Putsch da Cervejaria não deu certo: do núcleo originário de agitadores, Hitler, Hess e Röhm terminaram na cadeia, enquanto o frustrado aspirante a alguma coisa Heinrich Himmler voltou para casa e o aristocrático aviador Hermann Göring exilou-se na Áustria, cercado por copos de uísque e ampolas de entorpecentes.
Assim, o problema inicial dos nazistas foi de método. Depois do fracasso de 1923 eles desistiram da insurreição revolucionária: concluíram que seria melhor chegar ao poder por meio do sufrágio democrático. Com efeito, um dos regimes mais criminosos do século 20 foi legitimado por eleições perfeitamente livres, como as que ocorriam nos Estados Unidos da América, na época, e as que ocorrem hoje, no Brasil. Secretariado por Rudof Hess, Hitler aproveitou aquela temporada na cadeia para escrever o “Mein Kampf” (Minha Luta), miscelânea tresloucada de mitos e ódios onde estabelecera um inimigo ainda mais odiado do que a França e os comunistas: o povo judeu. Um talentoso jornalista renano leu a obra e encantou-se. Em breve Joseph Goebbels passaria de simples admirador a mais devotado colaborador de Hitler, encarniçado antissemita e chanceler por algumas horas, antes do cianeto, em 1945.
Mas, apesar da crise inflacionária e daquela breve conversão democrática, o povo alemão continuou sem dar ouvidos a Hitler e ao seu grupo de excêntricos radicais de extrema-direita. Nas eleições de 1924 e 1928 fez com que sofressem derrotas fragorosas para o parlamento alemã (Reichstag). Parecia que esses homens, com suas ideias extremistas, estavam mesmo fadados a desaparecer do mapa da política alemã. Até que um fator externo, o Crash de Wall Street, em 1929, fez com que a economia do país, parcialmente remediada pela ação de governos social-democratas, entrasse em queda livre. A bonança foi embora, empresas faliram e o desemprego, seguido pela fome, atingiu 6 milhões de pessoas. É um cenário-padrão: enfim estavam dadas as condições para o florescimento da barbárie, quando a razão cede ao misticismo, a política vira religião e os líderes se convertem em mitos.
A essa altura já existia uma ideologia nazifascista baseada em pseudoteorias raciais, ainda difusas, que disseminavam a ideia da superioridade ariana; baseada também em altas doses de nacionalismo, situação em que todas as diferenças de classe foram suprimidas em nome da unidade do “povo”. Depois de 1929, Hitler, cujo discurso de ódio era voltado contra o Tratado de Versalhes — causa, segundo ele, de toda a desgraça alemã no pós-Primeira Guerra —, retorna à cena política com certo prestígio porque ele e seus seguidores fanáticos teriam sido os únicos a prever a catástrofe. Parecia, então, serem os únicos capazes de também superá-la. Deveram a essa esperança momentânea sua primeira eleição vitoriosa sobre a social-democracia, em 1930, quando saltaram de pouco mais de dez para mais de 100 deputados no Reichstag. Eram, agora, a segunda força política na decadente República de Weimar.
Em condições de negociar, Hitler foi nomeado chanceler em 1933. Estava fundado o III Reich, e logo em seguida o prédio do parlamento fora incendiado. Imediatamente os nazistas culparam os comunistas, seus maiores adversários políticos e um dos principais bodes-expiatórios do grupo. Culpar os outros é de praxe na política em geral, mas entre os populistas e demagogos tem uma lógica sistemática: constitui uma maneira eficiente de distrair o povo e de se livrar das próprias responsabilidades. A morte do presidente alemão Paul von Hindenburg, em 1933, precipitou o fim da República de Weimar e o início efetivo da Alemanha nazista. Hitler assumiu a presidência coroando os esforços de mais de uma década. O incêndio do Reichstag deu-lhe um motivo concreto para justificar a violenta repressão contra os comunistas criando a Gestapo, mas os resultados econômicos de seu governo não apareciam. A Alemanha continuava em crise e os alemães continuavam insatisfeitos, para não dizer frustrados. Os nazistas precisavam de mais uma cortina de fumaça para distrair os alemães de suas misérias: essa cortina foi uma antiga obsessão nazista, o “povo judeu”. As leis antissemitas começaram a vigorar já em setembro de 1935. Seria uma das maiores fake news promovidas pelo ministro da propaganda, Joseph Goebbels.
Nos anos 1930 não havia redes sociais para propagar mentiras, mas já existiam os jornais impressos e o rádio, decisivos para manter o apoio dos alemães, convertidos ao messianismo de um ex-soldado da Primeira Guerra e líder insano, com tendências fortemente autoritárias. Hitler precisava de culpados a quem terceirizar as desgraças comuns, e Goebbels, titereiro e mestre da psicologia de massas, fez uso competente daqueles instrumentos de comunicação: estatizou-os para ter o domínio completo sobre as mentes, fragilizadas pela persistente crise econômica. Em situações criticas o povo perde a razão e, no seu desespero, se apega a qualquer absurdo.
É clássico: o discurso nacionalista, com exaltações patrióticas, marchas militares, símbolos e hinos estavam em alta em 1934. Os inimigos comunistas estavam nas ruas, com sua teoria de luta de classes. Mas os nazistas insistiam que não existia luta de classes, ladainha que pretendia dividir o povo entre opressores e oprimidos. A unidade era vital na sua lógica de dominação: com efeito, existia apenas uma nação contra os inimigos comuns, a serem massacrados. A primeira grave consequência desse surto nacionalista (Völkisch), cujo principal entusiasta era o mentiroso Joseph Goebbels, foi a Noite dos Cristais, em 1938: mais de 1.700 propriedades judias foram destruídas e mais de 30 mil judeus foram detidos, enviados a campos de concentração (ainda incipientes) ou foram simplesmente assassinados. Com apoio popular os nazistas haviam perdido de vez o pudor.
Houve, no começo, divergências em relação à tomada de poder pelos nazistas: revolução ou eleições livres? Houve, depois, divergência na forma de lidar com os judeus, bode expiatório para a crise econômica: seriam eles os saqueadores da nação. Goebbels era ruidoso e acreditava na ação direta, a olhos vistos: achava que era preciso intimidar com a violência aberta, nas ruas. Para o chefe da polícia (SS), Heinrich Himmler, galantemente fardado pelo estilista Hugo Boss, a “questão judaica” requeria métodos mais efetivos e obscuros. Assim, com a ajuda de outro oficial e lacaio, Reinhard Heydrich, cuidou de levar os horrores do nazi-fascismo a um patamar muito mais sombrio: a matança metódica de pessoas, de que é símbolo as experiências médicas de Joseph Mengele, nas enfermarias de Auschwitz. Da Conferência de Wanssee, em janeiro de 1942, nascia a chamada “solução final” e o Holocausto.
Cegada pela crise econômica e alimentada pelas fake news de Joseph Goebbels, uma parcela do povo alemão deu enfim todo o apoio ao destrambelhado líder nazista: seus sinais de desequilíbrio mental tornaram-se evidentes pouco antes da Batalha do Bulge, no final de 1944, de onde sairia derrotado. Quando os alemães saíram do transe de Adolf Hitler, 13 anos depois daquela primeira vitória concedida aos nazistas no parlamento, seu o país estava literalmente destruído, sobre uma pilha de 6,5 milhões de cadáveres.