O politicamente correto e seus descontentes

Chega a ser cômico e um pouco assustador ao mesmo tempo. As livrarias físicas e virtuais no Brasil foram invadidas, nos últimos anos, por guias e manuais com a defesa do chamado “politicamente incorreto”. Os conteúdos se aproximam do humor, teorias mirabolantes e informações duvidosas, mas são vendidos com toda a seriedade para multidões de leitores. Uma loja virtual oferece, por exemplo, um kit de oito desses livros por 379 reais. Estamos diante de um fenômeno de massas e rentável para as editoras.

Os guias politicamente incorretos trazem assuntos variados: sexo, rock, feminismo, História do Brasil, América Latina, filosofia, capitalismo, empreendedorismo, mudanças climáticas, comunismo, Islã, cruzadas, civilização ocidental. A lista só cresce. Há autores brasileiros e estrangeiros. A intenção é, sem dúvida, chocar por meio de “infotainment” (mistura de informação com entretenimento). Não é por acaso que um dos efeitos provocados seja o surgimento de livros e resenhas para corrigir os erros das obras.

Descendo um degrau no prestígio cultural, os guias vêm ganhando versões para canais no YouTube que surfam a onda nova, junto a um público jovem das classes C e D. Tornou-se popular ser politicamente incorreto. Também emissoras de rádio e TV mantêm cópias brasileiras de Rush Limbaugh, morto este ano e que popularizou a expressão “feminazi” para se referir às feministas nos Estados Unidos.

O berço dos dois polos (os “corretos” e os “incorretos”) são a América dos anos Reagan, a década de 1980. Se existe algo com esse nome, o politicamente correto, ele tem raízes na chegada da “teoria francesa” (french theory) aos EUA no final dos anos 1960. A turma de Derrida, Foucault, Lacan, Deleuze e Guattari entrou, naquela época, para os currículos dos departamentos de letras e temas culturais. Uma prosa dura, sofisticada, serviu de base para a “última utopia”, os Direitos Humanos, para usar a hipótese de Samuel Moyn.

Com a derrota das manifestações de maio de 1968 e a consequente reação conservadora, restou ao pensamento liberal e progressista o abandono da ideia de revolução social. A transformação não viria mais de mudanças estruturais da economia, mas sim das micropolíticas. Nada de quebrar o centro nervoso do mundo (finanças, indústria). A disputa seria nas margens do sistema, tendo as minorias sociais como protagonistas. Buscar brechas, entrelugares, lugar de fala, eis a última utopia a ser perseguida.

Os maiores divulgadores do novo pensamento foram acadêmicos de origem indiana, lotados nas universidades dos EUA. Com intervenções de alta repercussão, Gayatri C. Spivak e Homi K. Bhabha tornaram-se figuras mundialmente conhecidas e estudadas. Um pouco antes deles, Edward Said desenvolveu a ideia de “orientalismo” na produção cultural do Ocidente. Formou-se assim uma massa crítica de textos e interpretações que, sem dúvida, renovou o pensamento crítico a partir da academia americana.

Surgiram discípulos pelo mundo todo, numa mistura de teoria francesa e crítica ao orientalismo. No Brasil, Silviano Santiago foi um pioneiro dessa linhagem nos anos 1970. Essa pauta abriu um caminhão no debate acadêmico e público ao tratar de racismo, feminismo, direitos de LGBT e imigração das antigas colônias europeias. Por outro lado, enquanto ganhavam prestígio no mundo inteiro, aqueles mesmos pensadores franceses perdiam espaço na terra natal para os “novos filósofos” conservadores.  

Cultura da reclamação

Quando perceberam a invasão francesa e sua repercussão na academia, certos intelectuais nos EUA reagiram de forma estridente e violenta. O crítico de arte Robert Hughes soltou o verbo e chamou o movimento de “cultura da reclamação”. Harold Bloom estava na Universidade de Yale no desembarque dos franceses, mas perdeu as estribeiras ao ver seu quintal invadido. Onde já se viu substituir Shakespeare por uma ralé de autores chicanos e afrodescendentes, indagou o crítico literário.

Bloom enquadrou os afrancesados no termo “escola do ressentimento”. Assim como Hughes, ele apontou o dedo para aqueles que estariam apenas reclamando da vida e da cultura. Um bando de ressentidos contra “cânone ocidental”, disse ele. O objetivo era claro: já que os franceses e seus seguidores queriam rever a lista de obras e autores a ser estudada, era fundamental fixar princípios para a disputa cultural. Os deuses intelectuais desceram da “torre de marfim” para defender os valores da “torre de marfim”.

Na mesma época de Bloom, a batalha de cânones ganhou uma formulação geopolítica nos estudos de Samuel Huntington. Segundo ele, haveria um “choque de civilizações”. Trata-se de uma falácia, diga-se de passagem. O problema do mundo, desde então, é a crise do capitalismo que não consegue mais gerar ganhos sem destruir empregos. Mas inventaram uma cruzada salvacionista do Ocidente que estaria sob ataque de islâmicos fundamentalistas e de povos orientais. Hoje o inimigo dos ocidentais seriam os chineses, justamente os maiores parceiros dos EUA. Uma ideia que não para em pé.

O caldeirão contra o politicamente correto teve reforços ainda mais intensos — e, também, sem sentido. Em 2007, por exemplo, o psiquiatra Anthony Daniels (que usa o pseudônimo Theodore Dalrymple) publicou o livro “Em defesa do preconceito — a necessidade de se ter ideias preconcebidas”. É chocante ler uma obra que defende a liberdade de ser preconceituoso. Definitivamente não havia mais limites éticos, morais e políticos para a reação à teoria francesa (no meio acadêmico) e ao politicamente correto (na mídia).

Como não poderia passar em branco, houve a versão brasileira do movimento reativo. O jornalista Paulo Francis pautou nos anos 1990 o debate americano no Brasil, com altas doses de escracho, calúnia e preconceito, bem no seu estilo de cronista. Também apareceu naquele período um personagem periférico no campo cultural, mas que teve imenso peso no ataque ao politicamente correto nos últimos anos: Olavo de Carvalho. Ambos são os pais de quem milita atualmente em favor dos “incorretos” no Brasil.

Guerras culturais

A crítica ao politicamente correto se revigorou no ano de 2016, quando Donald Trump ganhou as eleições nos EUA. Pela primeira vez, chegava ao centro do poder global um defensor radical de ações contra minorias sociais e praticante de linguagem agressiva para se comunicar. O marketing político passou a assimilar a nova gramática de palavras e de lógica discursiva contra o “processo civilizatório” (para lembrar Norbert Elias) que está na base da teoria francesa e do politicamente correto.

No Brasil, o ponto de virada desse movimento global foi o cancelamento da exposição Queermuseu, em setembro de 2017, em Porto Alegre. O episódio expôs a mistura de oportunismo político e defesa de uma nova moral reacionária e totalizante. Em novembro daquele ano, outro episódio inacreditável foi o protesto contra a filósofa Judith Butler, acadêmica discreta que desenvolveu os chamados estudos de gênero nos EUA. Houve queima de bonecos e confrontos em frente ao local do evento em São Paulo.

Interessante notar que a crítica conservadora ganhou um reforço com a entrada recente de autores liberais, progressistas e ligados à esquerda nesse debate. É um ponto de vista tão incisivo quanto o dos conservadores, tendo o aspecto positivo de não defender a eliminação de adversários. Pensadores que ainda se reconhecem na tradição democrática e se preocupam obviamente com o movimento iniciado por Trump — como mostra o livro “Como as Democracias Morrem” (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

Mark Lilla publicou em 2017 o livro “O Progressista de Ontem e o do Amanhã: Desafios da Democracia Liberal no Mundo Pós-políticas Identitárias”. O ponto central são as ideias identitárias nos EUA pós eleição de Trump. Segundo Lilla, os liberais do Partido Democrata deixaram para os republicanos o discurso da unidade do povo americano e abraçaram a fragmentação das minorias (mulheres, negros, LGBTs, imigrantes). Não há mais o que unifique o ideal democrático do país.

Ao se fragmentar, dizem os liberais nos EUA, o movimento identitário diluiu os projetos mais amplos de mudança e inclusão sociais. Mas o que se esquece é que combater o racismo significa tratar da situação da camada mais fragilizada e de menor renda em boa parte dos países. Em outros termos, adotar cotas raciais na educação é uma reparação histórica e uma forma de atender os mais pobres — que são majoritariamente negros. É a transformação possível pela base da pirâmide social na atualidade.

Identitários em xeque

Os problemas do identitarismo vistos por Lilla são também o foco de Francisco Bosco em “A Vítima tem Sempre Razão?” (2017). No livro, o autor analisa a batalha cultural, a partir de 2013, de grupos minoritários nas redes sociais. O ambiente virtual seria hoje um espaço de acertos de contas, linchamentos e cancelamentos que surgem quase sempre nas lutas identitárias, diz ele. O Brasil está perdendo traços positivos de sua identidade, conforme pensada pelos clássicos intérpretes Gilberto Freyre e Sergio Buarque.

Mais enérgico nos argumentos é Antônio Risério, em “Sobre o Relativismo Pós-moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” (2019). Há uma exposição correta da disputa cultural que tem nomes, lugares, assuntos definidos, porém o autor faz uma defesa de princípios universalizantes, como a liberdade de expressão. O discurso em favor de questões universais (ou imperativos categóricos) é sempre a estratégia dos conservadores. No final, a culpa maior pela violência estaria na esquerda identitária.

“Violência à direita e violência à esquerda, é o que vemos. De fato, em matéria de ‘caça às bruxas’, muito embora com sinais ideológicos pretensamente opostos, o velho macarthismo e o novel identitarismo se equivalem, ou até mesmo este supera aquele na escala de ódio”, assinala Risério, que foi personagem da polêmica recente das “sinhás pretas”. Autor de guias de politicamente incorreto, Leandro Narloch recorreu a um livro de Risério para falar sobre uma escrava que teria enriquecido no comércio de rua e deixado até bens em seu testamento.

Jessé Souza foi outro pensador que entrou firmemente na discussão. Lançado neste ano, o livro “Como o Racismo Criou o Brasil” expõe o ponto de vista do autor já no título. Mas isso não impede que ele faça uma crítica duríssima ao conceito de “lugar de fala” — um dos termos centrais dos movimentos identitários e um dos alvos preferenciais que os conservadores usam para ridicularizar o politicamente correto. Sem meias palavras, Souza enquadra a expressão “lugar de fala” no vocabulário do neoliberalismo.

Ainda está longe de acabar a guerra que envolve as questões das minorias sociais. O debate foi parar até na série “The Chair” (2021), do Netflix, que mostra o microcosmo de uma faculdade norte-americana. Como disse anteriormente, os conservadores defendem a existência de um choque entre civilizações e querem fazer o debate abstrato sobre valores, numa retórica conhecida que vê a decadência civilizatória. Me parece, na verdade, uma cortina de fumaça para adiar o problema da inclusão de grupos minoritários.  

Salvo engano, ficou claro a existência de uma crise mais ampla em nível mundial. O politicamente correto surgiu como um conjunto de ações pensadas para incluir minorias sociais aos padrões de bem-estar e de sociabilidade no capitalismo — sem os riscos de uma ruptura socialista ou algo semelhante. No entanto, a economia global mostrou com todas as letras e números que é feita para poucos e não tem condição alguma de atender todo o mundo em níveis adequados de consumo e serviços.

Corre-se o risco de os “corretos” pregarem no vazio, pois desapareceu a possibilidade de inclusão social no século 21. Ficou sem chão uma pauta de mudanças de 50 anos atrás e que jamais foi atendida. O que se vê, na prática, é a ocorrência de uma guerra por emprego e dinheiro escassos. No plano discursivo, os “incorretos” ou “descontentes” recorrem ao pretexto de valores universais, tradicionais e culturais para manter tudo como está e para combater o inimigo das ideias politicamente corretas.