Ela tem 22. Nasceu no interior da Bahia, perto de Ilhéus. Começou a ser abusada aos 12. Engravidou aos 13. E pariu aos 14. Enquanto desatarraxo da virilha um maldito carrapato do exército de aracnídeos que invadiu o meu corpo, escuto a biografia atroz e faço as contas com os dedos. O filho completou 8 aninhos, mora com avó e nunca mais retornou para a escola desde o início da pandemia. Eu podia jurar que carrapatos fossem insetos. Não. Não são.
A mocinha é uma negra conversadeira, carismática e de rosto arredondado. Puxa assunto comigo enquanto coa café. Cheiro bom. De café. E dela também, sei lá, pode ser, por que não, eu suponho, não me atreveria a farejar. Afirma que gostaria muito de voltar a estudar e que sonha em se tornar uma cozinheira profissional, dessas que usam gorros engraçados, piercing nas narinas e uniformes branquíssimos como os seus dentes africanos. Falta-lhe a ambição de sonhos mais palpitantes. Mas, quem foi que pediu a minha opinião?
Os meus olhos cínicos, ou melhor, os meus olhos clínicos identificam inchaço e hematoma no seu rosto de mulher preta. Todos já sabem que foi surra do companheiro, mas, ela garante que esbarrou a cabeça numa cômoda, nada de mais, não se preocupe. Ela admite, contudo, que nem tudo vai muito bem, que vive os seus últimos dias naquela propriedade e que vai retornar para a Bahia até o final do ano, com a graça de Deus. Não está dando certo com o marido que é ciumento feito um jumento. Preferiria mudar para outra cidade. Não gosta nem um pouco das recordações da meninice. Mas, não tem outra alternativa. Se não voltar para a casa dos parentes vai acabar passando fome sozinha ou virando puta na capital. Quem usou este termo foi ela, vou logo avisando.
Ela recomenda que eu pegue um chumaço de algodão, embeba com gasolina e passe sobre os carrapatos. É batata. Perguntei se deveria riscar um fósforo logo em seguida. Ela gargalha e diz não, claro que não. O combustível faria com que os bichinhos sufocassem, desgrudassem da pele, facilitando assim a retirada deles, sem que os ferrões ficassem encrustados no tegumento. Quando o ferrão permanece, o processo inflamatório que se forma no local é intenso, prolongado e, sobretudo, pruriginoso.
Apesar de bastante jovem, ela demonstra ser experimentada na lida com os visitantes, geralmente, pessoas urbanoides ao extremo, neuróticas, sedentárias e arrogantes que desejam desacelerar a loucura para experimentar o contato com a natureza, com a pureza do ar campestre, com o silêncio tortuoso das trilhas, com a emoção claudicante das pedras e dos despenhadeiros, com a fantástica desconexão da internet e as suas patéticas redes sociais que desperdiçam tempo sem levar a nenhum resultado relevante, senão, mais solidão.
A natureza tem dessas coisas. Sempre nos surpreende. Fazia tempo que eu não me banhava numa cachoeira. É fato que, por causa do frio intenso da água, os meus testículos foram parar na garganta, junto às amígdalas, mas, este é um detalhe irrelevante. Exploramos uma parte intacta do cerrado que ficava próximo ao Parque da Chapada dos Veadeiros, uma gleba bem cuidada que tinha sobrevivido às queimadas criminosas e à sanha dos criadores de gado. O dono explica que planeja lotear a fazenda e vender as frações para compradores interessados no usufruto e na preservação do meio ambiente. O projeto é ousado, mas, ele garante que existe uma demanda reprimida por esse tipo de negócio e que o empreendimento será economicamente sustentável. Tem mais gente destruindo o planeta do que zelando dele, mesmo assim, dá para apostar num crescente nicho de mercado que anseia frear o ritmo de vida urbana para se reconectar com a natureza.
Experimento o café. Está delicioso como bolinhos-de-chuva. Faço um elogio rasgado e a moça sorri com todo aquele repertório de dentes branquinhos, alinhados e sofridos que beiram a perfeição. Dádivas da negritude. Explico que partiremos depois do almoço. Barriga cheia, pé na areia. Ela lamenta, faz votos para que voltemos em breve e comenta que é bem provável que ela já não esteja mais por ali. Vai pedir as contas, largar o marido e voltar para a sua terra natal, não necessariamente nessa ordem. Dou manjados conselhos de um homem branco, experimentado, que nunca passou perrengues na vida; palpites simplistas, certamente boçais, baseados em meritocracia e outras bobagens do gênero, muito embora, eu fale com genuíno interesse em ajudá-la. A moça pede licença e vai cuidar dos afazeres.
De volta ao caos metropolitano, faço planos de voltar em breve para a chapada, onde chapamos os melões com as bebidas, com as cantorias de violão, com o amor sincero das amizades reaquecidas e com a beleza natural de uma flora única, rústica, intacta. Os carrapatos fizeram um verdadeiro estrago na minha lataria, num ataque massivo e, provavelmente, merecido. Enquanto passo pomada nos calombos inflamados, toca o telefone. É o proprietário da fazenda onde nos hospedamos durante o feriadão da padroeira. Quer saber se gostei das cachoeiras refrescantes, das florezinhas do campo, das frutinhas exóticas, das árvores feiosas e retorcidas, da passarinhada encantada, dos aposentos modestos e da comidinha caseira.
O adjetivo que escolho para expressar o meu contentamento é “perfeito”. O sujeito sorri com o corpo inteiro do outro lado da linha, agradece, porém, tem uma notícia muito triste para contar. Sabe a cozinheira? Sei. Aquela mocinha que veio da Bahia? Sei. Pois então, a pobre foi atacada e morta a facadas pelo próprio companheiro. O corpo já seguiu para Ilhéus. O facínora continua foragido da polícia.
Eu, como não tenho nenhum lugar seguro para onde fugir, desligo o telefone, desabo como um boneco de pano e saio para chorar na varanda. É mês de outubro. Chove, finalmente, no Planalto Central do Brasil.