Filme do Amazon Prime Video, baseado em uma história real, é uma obra-prima do cinema contemporâneo

Filme do Amazon Prime Video, baseado em uma história real, é uma obra-prima do cinema contemporâneo

Todd Haynes se tornou celebre em Hollywood graças aos filmes cuja temática tem por base a natureza carregada, assumidamente chorosa, over até. É o que se vê em “Longe do Paraíso” (2002), em que aborda a hipocrisia da vida em comum de um casal tido como perfeito, com abordagens críticas da homossexualidade e do racismo nos Estados Unidos dos anos 1950, e “Não Estou Lá” (2007), no qual explora as muitas facetas do maior nome do folk, Bob Dylan, um dos artistas mais importantes da história.

Haynes segue essa sua tendência em “O Preço da Verdade” (2019), filme de tribunal em que se debruça sobre a investigação solitária e o seu tanto autodestrutiva de um advogado decidido a provar a culpa de uma empresa num caso muito específico. A tal empresa é nada menos que a DuPont, líder em diversos segmentos, acusada pelo Ministério Público de uma cidadezinha de Ohio de lançar dejetos tóxicos nas águas de um rio que serve à toda a população local. O filme corria, portanto, o risco de escorregar feio no tom do melodrama; contudo, o que o diretor apresenta é uma narrativa comovente, sim, porém sóbria, mesmo racional.

Não poderia caber a outro ator se não a Mark Ruffalo o papel de Robert Bilott, o causídico que primeiro ganha proeminência defendendo megacorporações de insumos químicos, e o faz tão brilhantemente que logo é promovido. Ruffalo é um conhecido ativista das causas ambientais que se vale justamente de trabalhos de maior apelo comercial — a exemplo dos arrasa-quarteirões da Marvel, nos quais deu vida a Brian Banner Jr., o Hulk — para financiar produções menores, mas em que tem toda a autonomia para levantar as questões que julga relevantes, como se observa em “Minhas Mães e Meu Pai” (2010), e “Spotlight: Segredos Revelados” (2015).

Também por isso, Ruffalo cresce tanto depois que o personagem dá a grande guinada de sua vida e vai para o lado oposto do front. Acometido de uma crise de consciência como nunca tivera, mesmo lidando com todo gênero de escroques, Bilott aceita defender um fazendeiro, cujo solo da propriedade em que mora e do qual tira seu sustento, foi envenenado pela DuPont. Logo se sabe que o homem é morador da cidade onde o advogado nascera e crescera, e a narrativa vai adquirindo mais substância cênica. Antes um sujeito patologicamente frio, que controlava qualquer inclinação quanto a se deixar envolver pelas demandas da parte que representa, Bilott desenvolve seu lado de defensor da verdadeira justiça, um legítimo Dom Quixote se levantando contra gigantescos moinhos de vento, empreitada que pode lhe exigir um desempenho incansável e, no fim, reste debalde.

À medida que “O Preço da Verdade” avança, mais solitário Bilott se torna. É visível a degradação física e espiritual do personagem, que paulatinamente é dominado por comportamentos paranoicos. Tramas que exploram o argumento de anti-heróis arrependidos, que sabem terem feito a coisa certa, mas igualmente sabem que por essa mesma razão estão na mira de gente poderosa — e sem o menor problema moral em eliminar os inimigos do sistema — pontuam a história desde sempre. No caso dos advogados em especial, o exemplo mais contundente toma forma em “O Sol é para Todos” (1962), de Robert Mulligan (1925-2008). No filme de Mulligan, o Atticus Finch do saudoso Gregory Peck (1916-2003) é, como Bilott, um advogado íntegro e respeitado, que atende de graça quem não pode pagar. Quanto mais se analisa “O Sol é para Todos” em paralelo a “O Preço da Verdade”, mais as coincidências se estreitam. Em ambos, a figura do profissional que assume para si a responsabilidade sobre o destino de um cidadão comum tem, de fato, um aspecto messiânico, quiçá divino, quando se acolhe a hipótese de estarem Bilott e Finch investidos de poderes de que mais ninguém em seus respectivos pedaços de mundo dispõe. O personagem de Peck é o único a acreditar em Tom Robinson, um rapaz negro acusado de ter cometido estupro contra uma moça branca em Maycomb, Alabama. Alvo da admiração dos habitantes de Maycomb até aquele momento, Finch passa a ser hostilizado, malgrado tudo aponte para a inocência do rapaz. Da mesma forma que se passa com Bilott. Ao conduzir a narrativa de “O Preço da Verdade” em ritmo uniforme, Haynes opta dar ao filme a agonia de que a trama não pode prescindir, afinal foram duas décadas de espera até que a ação fosse a julgamento. O diretor também realça o kafkiano da história, com direito a perambulações por escritórios e órgãos públicos que criam dificuldades para vender facilidades e não resolvem nada.

Tragicamente semelhante à realidade nossa de cada dia — conjuntura que burocratas e déspotas do mundo inteiro tiveram o poder de cristalizar — as proposições controversas apresentadas em “O Preço da Verdade” (individualismo versus bem comum; capitalismo bestial contra ambientalismo extremista; vida em oposição à morte), remetem à urgência de se discutir com seriedade assuntos como a importância vital de se preservar os recursos naturais, tenha-se ou não um Rob Bilott ou um Atticus Finch a fim de mitigar nossa impotência e nossa covardia. Os genuínos salvadores da pátria (e, por extensão, da humanidade) não têm o hábito de vestir a capa da magnanimidade com tanta frequência.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.