O Brasil de 2021 está imitando as cenas iniciais do filme “Interestelar” (2014), de Christopher Nolan. Nos estados agrícolas do centro-sul brasileiro, a terra vermelha e desmatada para o plantio é varrida por ventos de cerca de 100 quilômetros por hora. Há uma ausência crônica de chuvas — traduzida para o nome técnico de crise hídrica. Com isso, levantaram-se gigantescas nuvens de poeira que cobriram cidades inteiras como Franca (SP) e Campo Grande (MS) nos meses de setembro e outubro.
As cenas reais do Brasil lembram muito o cenário pós-catástrofe de “Interestelar”. Nolan criou um interior dos Estados Unidos, onde se extinguiu o trabalho de engenheiros e cientistas. A única necessidade é ter bons fazendeiros para plantar milho e quiabo. As demais plantas se tornaram inviáveis por conta de pragas, poeira e mudanças climáticas. As casas acumulam montanhas de pó levantado pelos ventos descontrolados, e as crianças do filme começam a ter sérios problemas respiratórios.
Basta pensar nas lavouras atuais de soja e cana-de-açúcar do Brasil, e conclui-se que já estamos no pesadelo das nuvens de poeira em “Interestelar”. Não é um cenário absurdo e distópico se acompanharmos os recentes textos do cineasta João Moreira Salles na “Revista Piauí”, que investigou o presente e o futuro da Amazônia. Uma das informações mais assustadoras trazidas por Salles é que a agricultura vai migrar do Brasil para a Sibéria. A Rússia vem perdendo neve e geleiras, tornando sua parte norte agricultável.
Já pensei em escrever um romance que se passa em Brasília de 2069. Naquele ano, não haverá mais chuvas na região Centro-Oeste, porque a Amazônia foi devastada. O deserto em torno da capital federal permitirá apenas a instalação de fazendas de energia solar — a soja e o milho viraram produtos do passado. Imensos painéis que captam a luz do sol escaldante, e a água chega à região por meio de extensos dutos, a partir do Rio de Janeiro, onde opera uma usina para tirar o sal do mar.
No filme de Nolan, a saída para o apocalipse é a busca de outros planetas que possam abrigar seres humanos. Sempre a ficção científica tem o personagem messiânico e redentor, encarnado em “Interestelar” pelo ex-astronauta Joseph Cooper (feito pelo ator Matthew McConaughey). O final dos tempos é um mundo coberto de pó — uma imagem forte e recorrente da Bíblia. Na verdade, são nuvens de poeira no horizonte para engolir cidades, fazendas, máquinas e pessoas.
Vendo as cenas de poeira no Brasil, também lembrei do livro “Dentro do Nevoeiro” (2018), do arquiteto e crítico de arte Guilherme Wisnik. Ele analisa as diversas questões que envolvem as “coisas” imateriais do capitalismo contemporâneo: as nuvens para armazenar dados digitais, o efeito “blur” (borrão) usado pelos designers, o pó levantado pela demolição de prédios para reconfigurar cidades, a fumaça da queda das Torres Gêmeas em 2001, os tornados que varrem periodicamente os Estados Unidos.
“Onde há fumaça, há fogo. Mas onde está? Nas queimadas que destroem florestas para produzir pasto? Nos graves incêndios que assolam Portugal e a Grécia? Nas chamas que derretem museus e seus preciosos acervos no Brasil? No fogo criminoso que destrói favelas para forçar as remoções? Vivemos hoje sob a permanente sensação de uma tragédia recalcada, numa sociedade que normalizou a violência sob a forma encantatória e sedutora de nuvens que, como todo um tecnossublime contemporâneo, permeiam toda a vida social”, afirma Wisnik.
A “tragédia recalcada” são os acontecimentos que nem mais percebemos. A normalização ou naturalização de coisas provocadas pelas pessoas. É bem possível que as nuvens de poeira sejam consideradas normais daqui para frente ou o preço a ser pago pela atividade econômica. Chega-se assim ao clima de “tranquilidade catastrófica” dos contos José J. Veiga, conforme a leitura brilhante de Antonio Candido. Uma vida interiorana que parece pacificada, sem grandes novidades, mas que no fundo é uma imensa tragédia.