Reconhecermo-nos falhos, suscetíveis a toda sorte das tantas intempéries da vida, é, por si só, uma arte. À medida que vivemos, descobrimos, uns com mais dificuldade que outros, que temos todos a capacidade de abandonar o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refazer o percurso, do começo, se necessário. Muitas vezes precisamos largar tudo, abandonar a vida que levávamos até determinado ponto de nossa trajetória e acessar o mais obscuro de nosso espírito, no intuito de apreender o cenário em que estamos nos aprisionando e, assim, verdadeiramente, mudar. A estrada para a perdição é larga, porém sombria; uma vez que o homem envereda por essa senda tenebrosa da existência, surgem mil outros desvios que, por mais retos que possam se mostrar, conduzem-no à desventura e quiçá à morte. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais do existir. O pensamento de Heidegger assinala as muitas descobertas que fazemos ao longo da vida, uma cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória. A esse propósito, a irrequietude do homem frente ao passar do tempo, incansável, inclemente, cruel, fomenta nele justamente a premência de não desperdiçar oportunidades. Em identificando possíveis margens para arrependimento e correção de uma conduta qualquer, o homem deve sem hesitação vencer a correnteza e salvar-se. A existência humana para Heidegger é um eterno vir a ser, no qual nada é imediato, tampouco definitivo, e a natureza do homem tem de redobrar a cautela, a fim de não se comprometer com os projetos errados, uma vez que perder tempo é uma atitude que pode custar caro. A maneira como Heidegger entende a vida e, ainda mais extensivamente, a verdade da vida, aponta para uma conclusão tão poética como incômoda: devemos nos propor incessantemente novos meios de agir. Em “The Wrestler” (2008), o diretor Darren Aronofsky apresenta Mickey Rourke como poucos o conheceram. Antes um ator ovacionado em produções como “9 ½ Semanas de Amor” (1986), dirigido por Adrian Lyne, e “O Selvagem da Motocicleta” (1983), de Francis Ford Coppola, Rourke, num piscar de olhos, passara a experimentar todo gênero de dissabores, até dar outra vez a volta por cima. Já em “Uma Noite em Miami” (2020), Regina King aborda a urgência de se combater a discriminação racial nos Estados Unidos, por óbvio, certa de que a empreitada só tem alguma chance de sucesso se antes passar pela conscientização dos próprios negros. Além de “The Wrestler” e “Uma Noite em Miami”, nossa lista dispõe de mais oito títulos — os dez no Amazon Prime Video, lançados entre 2020 e 1948 —, para quem gosta de aliar diversão e análise crítica.
Imagens: Divulgação / Reprodução Amazon Prime Video

Logo que tomam posse do terreno para onde Jacob, um imigrante sul-coreano, despachara sua família, um matagal hostil e sem vida perdido no coração da América, sua mulher, Monica, e seus filhos vão se apercebendo das muitas dificuldades que terão para tirar daquele elefante branco alguma renda e, de fato, se estabelecer no novo endereço — Monica sobretudo. Aquele pedaço de chão é tudo quanto têm: o casal não dispõe de nenhuma poupança e não pode recorrer à ajuda de amigos, porque eles não existem. Voltar para a Coreia do Sul também não parece uma opção sensata, uma vez que no país natal passariam pelos mesmos apuros, majorados pela pecha do fracasso, legítimo anátema que estigmatiza sobretudo os homens orientais que, em não tendo conseguido empreender fortuna, são tomados por párias. “Minari” se vale das metáforas mais delicadas a fim de falar de uma família, pobre, deslocada no mundo e sem muita esperança no futuro, mas unida. O filme termina da pior forma possível, circunstância provocada justo pela personagem mais cativante da história, a avó que se muda da Coreia do Sul para os Estados Unidos a fim de auxiliar a filha, sobrecarregada, nos afazeres domésticos — e louve-se a performance de Youn Yuh-jung, agraciada com o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Apesar da desgraça avassaladora que os colhe, eles não se deixam abater e não se deixam separar. Tudo o que têm a fazer é começar de novo. Mais uma vez.

“Uma Noite em Miami” sugere um encontro fictício entre quatro expoentes da cultura pop dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945): Malcolm X (1925-1965), vivido por Kingsley Ben-Adir, ativista pelos direitos civis dos negros; o Rei do Soul Sam Cooke (1931-1964), papel de Leslie Odom Jr.; o ex-jogador de futebol americano Jim Brown, personagem de Aldis Hodge, que depois passa a trilhar uma carreira de sucesso como ator em Hollywood; e o pugilista Cassius Clay (1942-2016), Muhammad Ali depois da conversão ao islã, interpretado por Eli Goree. Na história, os quatro se reúnem num quarto de hotel para celebrar a conquista do cinturão dos pesos-pesados por Ali, enquanto cresciam as diferenças de Malcolm com Elijah Muhammad (1897-1975), outro líder negro, bem como seu antagonismo em relação ao FBI, o departamento federal de investigações americano, comandado com mãos de ferro entre 1935 e 1972 por J. Edgar Hoover (1895-1972). Com o filme, terceira experiência de King como diretora, são exploradas hipóteses novas quanto a se chegar a respostas para o fim do racismo e da discriminação racial, questões das mais controversas na sociedade americana ainda hoje.

Em Páscoa Cove, uma pequena vila de pescadores em algum lugar do belo litoral do Maine, no extremo nordeste dos Estados Unidos, a população masculina ganha a vida no mar, ao passo que as mulheres se dedicam a manter a ordem da comunidade. Mary Margaret Connolly, a matriarca mais famosa daquele lugarejo, acaba de morrer. Com a morte da mãe, Mary Beth e Priscilla se veem em dificuldades, motivadas por contas que nunca se preocuparam em quitar e empréstimos bancários em aberto. Priscilla assume a peixaria do clã, mas a irmã mais nova não concorda em oferecer sua cota de sacrifício, determinada a ressuscitar um velho sonho: abandonar Páscoa Cove e ganhar o mundo.

Rian Johnson é mais um dos muitos diretores a reverenciar — a seu modo — a Dama do Crime. A escritora britânica Agatha Christie (1890-1976) continua a servir de base para uma infinidade de filmes de suspense, o que se pode ver às claras aqui. Todavia, em “Entre Facas e Segredos”, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e transfigura a narrativa, não importando mais quem fez o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino. O morto em questão é Harlan Thrombey, célebre autor de livros de suspense — e o espectador adora esses joguinhos metalinguísticos —, degolado com requintes de crueldade aos 85 anos em sua própria mansão. Benoït Blanc, renomado detetive com direito a perfil na revista “New Yorker” e tudo, parece o único habilitado a solucionar o caso, e logo conclui que, por um motivo ou outro, todos os que conviviam com Thrombey tinham razões de sobra para matá-lo. Os pontos em comum com “Assassinato no Expresso Oriente”, publicado em 1934, são inegáveis, mas “Entre Facas e Segredos” é original ao revelar, já no segundo ato, as circunstâncias em que se deu o crime, sendo esse o anticlímax fundamental do enredo, com o adendo de que determinados personagens sabem o que houve e tentam de todas as maneiras dificultar a vida de Blanc, enquanto os demais permanecem à deriva na trama, conjecturando, como o público, de que maneira o imbróglio vai acabar. Dessa forma, o filme ganha em complexidade, apresentando dois polos independentes, pontuados por situações cômicas, em que as condutas de todos os suspeitos serão escrutinadas, cada qual com suas peculiaridades. Nunca prescindindo por completo dos chavões do suspense tradicional, Rian Johnson entrega um filme tenso e divertido, dispondo dos tipos que constrói feito peças de um jogo de tabuleiro, manipulando-os mais à frente ou mais à retaguarda, nos ritmos mais diversos, no intuito de conferir à história o dinamismo que a caracteriza e a torna tão genuína.

Richard Linklater é um homem obstinado — e muito criativo. Quem ao menos teria a ideia de filmar, valendo-se do mesmo ator, a trajetória de um personagem por 12 anos? Não, você não leu errado. O diretor mostra a transição da infância para a adolescência de uma mesma pessoa, ou seja, “Boyhood” levou 12 anos para ficar pronto. Em 2002, Mason é um garoto meio solitário, meio melancólico também, tendo de lidar com a negligência afetiva do pai, a inconstância da mãe, sempre arrumando um namorado atrás do outro, e os conflitos habituais com a irmã, enquanto tenta administrar mudanças, físicas mesmo, de cidade, regularmente. A vida não se apresenta muito amigável para ele e ao longo da narrativa, testemunhamos o amadurecimento de Mason, torcemos por ele, esperando que ele compreenda que a vida não é fácil mesmo.

Jiro, um velhinho japonês, passou 75 anos de sua vida preparando sushi. Hoje dono do Sukiyabashi Jiro Honten, um restaurante simples — mas prestigiado — na estação do metrô de Tóquio, abdica de seu negócio em favor do filho para… continuar se dedicando à sua arte, agora sem as pressões da clientela, sem as neuroses de ter de chefiar a cozinha de um estabelecimento movimentado. Arquétipo do homem humilde, que venceu na vida, mas não abandonou suas raízes, e compenetrado no que traçara como seu destino, o octogenário se permite destrinchar pelas câmeras do diretor David Gelb, que elabora um delicado perfil sobre a importância da probidade e o poder do trabalho em “Jiro Dreams of Sushi”. Lançado em 2011, o documentário se empenha em ressaltar o exemplo do menino simples que, aos 10 anos, passa a ajudar o pai no pequeno comércio que mantém, aprender a manipular facas e outros utensílios perigosos, e logo se descobre portador de um talento especial: fazer sushi, um dos pratos mais tradicionais da culinária nipônica, popularizado no Brasil em fins dos anos 1990. Seu restaurante — até então cotado com as três estrelas que o guia Michelin reserva apenas às melhores casas de gastronomia do mundo, o único especializado em sushi da publicação — continua badalado e despertando o interesse de personalidades ao redor do globo, entre as quais o ex-presidente americano Barack Obama e o ex-premiê do Japão Shinzo Abe. Hoje excluído do Michelin, o Sukiyabashi Jiro Honten segue em atividade, mas sem aceitar reservas. A propósito, Jiro Ono, prestes a completar 96 anos, vai bem, obrigado.

A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow — a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron ao ganhar o prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 25 anos depois da proeza de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se empenhou no caso passados 25 anos. Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que encerra o crime o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) e “Abraços Partidos” (2009) — de maneira muito mais introspectiva, claro. O longa se destaca por unir eventos que podem parecer soltos na narrativa, compondo um mosaico inteligível apenas quando visto por inteiro. Nessa história, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos Seus Olhos” é um filme sobre o que não se deixa ver.

Astro de primeira grandeza ao longo dos anos 1980, quando protagonizou o drama erótico “9 ½ Semanas de Amor” (1986), dirigido por Adrian Lyne, e o aclamado “O Selvagem da Motocicleta” (1983), de Francis Ford Coppola, Mickey Rourke virou um pária. Da noite para o dia, não tinha mais dinheiro, os bons papéis corriam dele, glória era coisa do passado. Puglista na adolescência, Rourke chegara a ir longe com o boxe — venceu a primeira luta aos 12 anos, ainda ostentando o nome de batismo, Andre, e pesando pouco mais de 50 quilos. Cinco anos depois estava fora dos ringues e passados outros 20 anos era obrigado a retomar o velho ofício, muito mais gordo, amargurado e falido. Apesar da perda da naturalidade das expressões, culpa das muitas pancadas que, não raro, o fizeram beijar a lona — e das cirurgias plásticas para amenizar seus efeitos —, Rourke voltara com sangue nos olhos a fim de defender um personagem semi-autobiográfico em “The Wrestler”. Randy “O Carneiro” Robinson, também é um lutador profissional alçado à fama no cinema durante os anos 1980, mas que perde tudo e volta ao combate. O contraponto à dureza do Carneiro é muito bem explorado pelo diretor Darren Aronofsky, que faz da stripper Cassidy, vivida por Marisa Tomei, o par perfeito para ele: a dançarina, apesar de ainda bonita, está velha demais para ganhar a vida com o corpo, exatamente como o boxeador. Bem avaliado pela crítica internacional e hoje cultuado por fãs do ator e do esporte, “The Wrestler” é a prova de que nada nunca está perdido (ao menos não para sempre). Pela performance na trama, Mickey Rourke ganhou o Globo de Ouro de Melhor Ator em Filme Dramático e foi indicado ao Oscar de Melhor Ator por sua composição de um homem que apanha, sangra, mas tem sempre um gancho de direita a desferir na hora certa.

Los Angeles já era a capital do pecado em 1950, cheia de tipos obscuros, ainda que talentosos, todos com contas a acertar com o passado, quase sempre eivado por corrupção e crimes. Em “L.A. Confidential”, o diretor Curtis Hanson (1945-2016) se vale do estereótipo da mulher enigmática e sedutora, cuja personalidade ardilosa mascara suas reais (e pérfidas) intenções, e em torno da qual a trama se desdobra, de preferência a horas mortas, quando ninguém vê. A natureza de filme noir de “L.A. Confidential” — realçada por elementos como uma trilha sonora baseada em solos de saxofone —, faz com que o talento de cineastas como Curtis Hanson nunca reste esquecido, tragado pelas brumas do tempo.

“Ladrões de Bicicleta”, de 1948, traz em seu bojo uma miríade de assuntos, e, por isso mesmo, pode ser interpretado sob milhões de pontos de vista. O filme narra a história de Antonio Ricci, um desempregado que, enfim, consegue trabalho como cartazista numa Roma ainda escalavrada pelo flagelo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Antonio só fica com o bico se tiver uma bicicleta, uma vez que a pé é impossível dar conta de tantos muros, em tantas partes diferentes da cidade — e em tão pouco tempo. Ele tem a bicicleta, então, assunto resolvido; o busílis é que empenhara esse seu único bem, e que justo agora lhe faz tamanha falta, e não dispõe da quantia necessária a fim de resgatá-lo. Sua mulher, Maria, vende o enxoval da família para conseguir o dinheiro; ele corre para a loja de penhores, paga o empréstimo (e os juros) e vai, enfim, trabalhar. Mas algo inesperado acontece e a desdita o colhe.