Errar é um acidente. Humano é querer acertar

Errar é um acidente. Humano é querer acertar

Parabéns, ó criatura perfeita. Tu conseguiste. Teu empenho valeu. Por teu esforço em te mostrares superior, conseguiste evoluir à categoria dos seres alados, como os dinossauros voadores, que não mais existem, as baratas de asas e os mosquitos de banheiro que continuam aí, perseverantes em sua chatice, aporrinhando como ninguém mais.

Tu que nunca erras, que tanto te orgulhas de teu quilate e de tua coragem de cuspir em nossa face imperfeita tua integridade, tu que adoras apontar e julgar e condenar os erros alheios. Tu mereces um diploma, uma distinção divina, a chave de todas as cidades. Tu és, sim, o melhor de nós. Afinal, quem somos nós para discordar de ti?

Daqui deste lado de baixo do mundo, onde resistem aqueles que ainda não chegaram ao Olimpo onde resides, impera apenas uma incerteza colossal. E um desejo honesto de, entre um erro e outro, tropeçar uma hora dessas num acerto qualquer. Por menor que seja, um acerto há de nos redimir e nos manter no caminho.

É que os erros da gente são nada senão acidentes de percurso. Ninguém erra por vontade própria, não. Erra-se por descuido. Erros são acidentes. Humano é seguir adiante e insistir no acerto. Mas isso as criaturas sobre-humanas como ti desconhecem. Porque nunca erram, não é mesmo?

Mas aqui, enquanto tentamos dar jeito na vida, faz bem imaginar a tua figura impecável caminhando por entre as nuvens. Tu que tanto te imaginas um animal formoso, uma águia americana, mas és menos que um urubu brasileiro. Tu és uma anta do tamanho de um elefante. É que tu mal sabes, criatura mesquinha e pesada, que o ódio que compartilhas por aí, em comentários irresponsáveis nas redes sociais, desejando a morte de um e o sofrimento de outro, é o mesmo, escandalosamente o mesmo ódio que na esquina seguinte desaba em uma criança inocente, atingida por uma bala perdida, disparada por um cretino que também se acredita juiz da vida e da morte. As doses desse ódio podem ser diferentes, mas o sentimento é o mesmo.

Como os mosquitos de banheiro que voam de encontro ao nosso nariz, tu não te enxergas. Tu mal sabes, mas és um bom e velho inseto de lavabo. Podes conferir. Até nos sanitários mais limpos do mundo, desses que os maníacos por higiene mantêm impecáveis por capricho doentio, uma hora aparece ninguém sabe de onde um tipinho curioso de voador, uma minimosca acinzentada e ridícula que pousa sobre a toalha ou num canto gelado e fica ali. Inútil como o quê. És tu, ó idiota de asas.

Do alto de tua nulidade, serves para nada além de causar efeito breve esvoaçando de repente na direção do nariz da gente. Pousas na parede, levas um sopro e te desfazes em meio grama de cinzas. Como uma criatura feita de nada.

Teu parente mais próximo na família dos seres enfadonhos são as criaturas capazes de ponderar “ah, mas se o bichinho está ali é porque você invadiu o hábitat dele!”. São os arremedos de bons samaritanos, conhecidos como “gente boazinha”, sempre agitando o estatuto de defesa das mamangavas, dos escorpiões, das sanguessugas, das baratas e dos afins.

Eu tenho medo de gente boazinha. De um lado, pronta a defender em retóricas inflamadas todas as criaturinhas da natureza. Do outro, capaz de jogar comida envenenada para o gato do vizinho porque não quer limpar de seu quintal o cocô do animal alheio.

Gente boazinha é mera caricatura das pessoas boas. Uma pretensão, um fingimento. O sujeito bonzinho é quase sempre um cínico, dissimulado, pateta. Aplaude de perto e agride de longe. Conta ao mundo que chorou com as imagens de bois e vacas no matadouro e vive na churrascaria, refestelando-se em rodízios de carne, descendo o pau no governo corrupto e contando como pagou menos imposto com a ajuda de recibos médicos forjados, reunindo a turma do clube para comprar meia dúzia de cestas básicas e levar na comunidade carente uma vez por ano, porque assim é possível renovar seu visto de gente boazinha.

Sonso completo, lobo em pelo de cordeiro, o ser bonzinho é capaz das piores atrocidades. “Aii… desculpa. Enfiei a faca em você, mas foi sem querer…”. Gente do tipo que acredita que a bondade é uma utopia e que ninguém precisa mais ser bom, leal, amigo. Basta ser bonzinho e sair divulgando por aí. Alma penada, dedica seus dias medonhos a infernizar a vida daqueles que, simplesmente, não fizeram o que ele queria, não se comportaram como ele mandara, não seguiram a cartilha esquizofrênica que ele escrevera com seus recursos pequenos, seus gestos rasteiros e seu feitio de réptil. Assim é o sujeito bonzinho.

E sabes tu quem são os únicos seres capazes de suportar um humano bonzinho? As pessoas perfeitas. Os seres evoluídos como tu.

Por tudo isso, seres perfeitos, gente boazinha e mosquitos de banheiro são nascidos uns para os outros. Vós vos mereceis. Então que sejam felizes. E nos deixem errar, acertar e usar o banheiro em paz.

André J. Gomes

É professor e publicitário.