Existem filmes que, quanto mais esnobados pela crítica especializada, mais sucesso fazem junto ao público comum. Este é o caso de “Efeito Borboleta” (2004), que passa longe de ser mero exercício narrativo sobre um jovem adulto enfrentando problemas de aceitação da realidade ao passo que se descobre capaz de viajar no tempo. Decerto, o que estigmatiza o filme é sua natureza melodramática, que emprega a ficção científica como trampolim para o mergulho num tema nada óbvio.
O exagero em “Efeito Borboleta” foi demoradamente calculado por Eric Bress e J. Mackye Gruber, diretores do longa. A propósito de abordar a descoberta de um amor que não tem chance de frutificar, Bress e Gruber centram fogo na obsessão que Evan Treborn, 20 anos, estudante de psicologia, desenvolve pela ideia de perfeição — justo ele, que para ter alguma noção do que se passa ao seu redor, tem de se valer das anotações que faz em cadernos, a fim de não se perder na própria vida, dada sua memória patologicamente suscetível. A esse respeito, pode ser que a intenção da dupla tenha sido de fato evidenciar o desajuste mental do protagonista, vivido por um Ashton Kutcher muito diferente da forma como o ator foi se apresentando ao longo da carreira. Kutcher, no papel mais improvável (e brilhante) de seu currículo, confere a Treborn o jeito gauche de que o personagem tanto carece. Percebendo que pode ser traído pelas próprias lembranças a qualquer momento, o universitário lança mão desse recurso, o que o atira numa roda-viva de apego excessivo a determinadas ideias, compulsões, comportamentos socialmente reprováveis e o consequente sofrimento psíquico.
O desafio de fazer Treborn crível, de convencer o público de que não se está diante de um tipo histriônico, de que o personagem de Kutcher é muito mais comum do que se pode imaginar é vencido com galhardia, graças ao roteiro sublimemente estudado, mas não a ponto de fazer “Efeito Borboleta” soar como um tratado médico, o que certamente surtiria resultado inverso ao pretendido. Os diretores expõem o tema do delírio, do mundo paralelo, da, vá lá, loucura empregando a metáfora da transfiguração temporal, da possibilidade de se poder sair de um momento histórico para o outro sem prejuízo da linearidade do enredo. Precisamente para que não reste inverossímil, o filme se devota em se estender por quase uma hora quanto a compor a exposição da vida de Treborn até então. Esse introito, o seu tanto longo para alguns, é fundamental quanto a admitir que o estudante tem mesmo todos os motivos para se reconhecer um completo estranho, no mundo e na própria vida. Enquanto são levadas à tela imagens do personagem em menino, tomando parte em episódios que já não se podem admitir como travessuras normais de crianças, se constrói um laço estreito entre o espectador e a história ela mesma. Quem assiste se depara logo com discussões de essência filosófica, a exemplo da ausência parental e do porquê de tal situação. Na esteira dos acontecimentos delituosos que deixam patente um jeito de ser bestial, se sabe que Treborn é criado apenas pela mãe, Andrea, papel de Melora Walters, que se desdobra para que nada falte ao garoto, uma vez que o pai está internado num hospital psiquiátrico. Vai-se estabelecendo um vínculo relevante nesse particular, quando a audiência passa a efetivamente ser capaz de sofrer as dores do menino — quiçá fadado ao desequilíbrio pela própria genética — e, por óbvio, da mãe. Numa passagem aparentemente sem maior relevo na trama, Andrea é mostrada consertando o motor do carro, quando vem o filho e lhe pergunta quando irão sair, já que ele está atrasado para a aula, e ouve como resposta uma insinuação sobre seu desinteresse pela escola. Aliás, é no ambiente escolar que se iniciam as conjecturas a respeito de um possível diagnóstico para a psicopatologia de Treborn — porque ele a tem, isso é inquestionável. Os desdobramentos desse evento fomentam no público a suspeita de que “Efeito Borboleta” também enverede pelo terror, hipótese não de todo equivocada.
Os imbróglios da vida adulta são, enfim, escrutinados pelo roteiro. Tal como Leonard, protagonista de “Memento” (2000), dirigido por Christopher Nolan, Treborn apresenta suas dificuldades tão específicas quanto a amadurecer e lidar com os problemas de maneira racional. Mais novo que o personagem de Guy Pearce no filme de Nolan, mas igualmente enredado por seus tantos fantasmas — que ganham uma dimensão que não teriam para pessoas sem os distúrbios neurológicos que os acometem —, Treborn, determinado a compreender de uma vez por todas o que se passa consigo, se debruça sobre os apontamentos que fizera acerca de si mesmo. Só aí se dá conta do elementar: por meio de expediente tão prosaico, pode recuperar grande parte do que seu cérebro lhe negligencia, numa operação de autossabotagem sufocante e que o expõe a riscos sem trégua, ficando menos vulnerável a seus habituais apagões. Sua personalidade paranoica vem à tona mais uma vez ao se questionar sobre em que medida não teria carregado nas tintas, fantasiado, se perdido em meio a seus próprios fluxos de consciência; por essa razão, se decide por procurar Kayleigh, a namoradinha de infância e adolescência, feita com graça por Amy Smart. A tentativa de volta ao passado, como sempre sói acontecer, é desastrosa — e esse é o ponto de virada, a reviravolta que, finalmente, explica boa parte da doença mental de Treborn. Escandalizado com o que fica sabendo, ele se convence, depois de tanta mágoa, de tanta amargura, de uma espiral de tragédias que absorveu boa parte de sua vida e da qual poderia ter se livrado muito mais depressa do que jamais supusera, que há coisas na vida que devem mesmo ser relegadas ao passado.
Evan Treborn é um indivíduo, como tantos, à procura de sua história. Aludindo ao conceito do homem contemporâneo que, submerso em meio a tantas demandas — a maioria falaciosas, ilusórias —, se entrega ou à devassidão do corpo ou à degenerescência do espírito, Eric Bress e J. Mackye Gruber apresentam em “Efeito Borboleta” um coming-of-age que se presta a detalhar os impedimentos à felicidade do homem comum, ainda florescendo para a vida, enquanto visa a tentar compreender a profundidade de existir, um processo doloroso, em que problemas de toda ordem são a tônica, mas que se encarados logo, seja qual for o cenário, tendem a sucumbir, malgrado essa também não seja uma certeza. A vida é uma sucessão de eventos que se interligam entre si, mas sempre há margem para a surpresa. E o que menos se pode esperar dela é lógica.