007 está morto. Quem o matou? Goldfinger? Largo? Jaws? Scaramanga? Oddjob? Seu arquiinimigo Blofeld? Não, nenhum dos vilões clássicos. James Bond foi vítima do “zeitgeist”, o espírito de porco de nosso tempo. O golpe fatal foi dado em 2006 com “Cassino Royale”, em 2008 recebeu extrema unção em “Quantum of Solace”, o moribundo deu um último suspiro na “Operação Skyfall”, de 2012, mas voltou a piorar em “007 Contra Spectre”, de 2015, e o atestado de óbito foi finalmente emitido em 2021, neste “Sem Tempo para Morrer”.
O objetivo declarado dessas produções era revigorar a franquia, apresentá-la a um novo público. Financeiramente a empreitada foi um sucesso. A estreia da saga “Cassino Royale” tornou-se uma das maiores bilheterias da série. Contudo, apesar do sucesso, e apesar de ser um bom filme de ação, “Cassino Royale” não é um filme de 007. “Quantum Of Solace” é pior: além de não ser um filme de 007 não é um bom filme de ação. As coisas melhoraram em “Operação Skyfall”, um bom filme de ação e o melhor filme de 007 em décadas. O resultado foi um imenso sucesso. Contudo, “007 Contra Spectre” recolocou a série na rota errada, culminando no vergonhoso “Sem Tempo para Morrer”, uma verdadeira novela mexicana disfarçada de filme de espionagem. O resumo da ópera é que, apesar das declaradas boas intenções, o dono da festa, simplesmente, não apareceu. O fato é que o personagem interpretado por Daniel Craig não é James Bond.
Não se trata de um engano. Bond, James Bond, não é um homem difícil de ser reconhecido. Na verdade, é reconhecível até demais, considerando que é um espião do MI6, o serviço secreto britânico. Gerado no mundo perfeito das ideias, na literatura “pulp” de Ian Fleming, tornada famosa quando John Kennedy declarou que era sua leitura de cabeceira, a primeira encarnação audiovisual de James Bond ocorreu em 1954, em um obscuro telefilme adaptado do romance “Cassino Royale”, atendendo pelo nome de Jimmy Bond, no corpo de um ator chamado Barry Nelson. A encarnação canônica surgiu em 1962, com o escocês Sean Connery, no filme “007 Contra o Satânico Dr. No”. Seguiram-se mais quatro aventuras, até 1967, ano de “Com 007 Só se Vive Duas Vezes”.
Mesmo ano em que foi lançada uma lamentável versão satírica de “Cassino Royale”, com o britânico David Niven como James Bond e, acreditem, Woody Allen como vilão. O australiano canastrão George Lazemby tentou assumir a coroa em 1969, com “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade”. Um bom filme com um protagonista fraco. A peso de ouro, Connery voltou gordo e envelhecido em 1971, com “007 Os Diamantes São Eternos”. Os diamantes sim, Connery, infelizmente, não.
Seu legitimo sucessor, o inglês Roger Moore, apareceu em 1973, estrelando “007 Viva e Deixe Morrer”. Entre pérolas, como “007 O Espião Que Me Amava”, e lixo, como “007 Contra o Foguete da Morte”, que contou com risíveis cenas gravadas no Brasil, foram mais seis filmes até 1985, quando Moore se aposentou com “007 Na Mira Dos Assassinos”. Em 1984, Connery retornou, ainda mais velho e gordo, para uma despedida melancólica do papel, no bastardo “007 Nunca Mais Outra Vez”, uma dispensável refilmagem de “007 Contra a Chantagem Atômica”, de 1965, produzida fora da franquia oficial, devido a problemas jurídicos com direitos autorais. Em 1987, o ator galês com formação shakespeareana Timothy Dalton encarnou Bond no bom “007 Marcado Para a Morte”. Porém, seu reinado durou pouco. Seu filme seguinte, “007 Permissão Para Matar”, de 1989, não foi bem recebido por público e crítica. A série ficaria suspensa até 1995, quando o irlandês Pierce Brosnan, assumiu o smoking no mediano “007 Contra Goldneye”. Com mais três filmes, Brosnan revelou-se um ótimo Bond em filmes duvidosos, mas de sucesso. Sua derradeira aparição, o exagerado “007 Um Novo Dia Para Morrer”, de 2003, é uma espécie de fechamento simbólico da série, repleto de homenagens aos capítulos anteriores, estabelecendo definitivamente a continuidade entre eles.
O suposto oitavo James Bond, interpretado pelo inglês Daniel Craig, não é o mesmo personagem vivido por Connery, Niven, Lazemby, Moore, Dalton, Brosnan ou mesmo Nelson. A culpa não é de Craig, reconhecidamente um bom ator. Foi mal escalado. Não por ser loiro, como muitos apontaram, uma vez que Moore também era, tampouco devido à junção de sua postura deselegante, charme tosco, altura apenas mediana e beleza questionável. Com esse perfil, em outros tempos, Craig faria no máximo o capanga de algum vilão bilionário e megalomaníaco com planos de dominação mundial, mas ainda assim é o menor de seus problemas. Todos esses senões poderiam ter sido minimizados se Craig contasse com scripts mais bem elaborados, mas seu 007 é cheio de problemas conceituais graves e ignora quase que completamente a longa tradição da dinastia Bond.
Não que James Bond seja um Hamlet. Não se trata de um personagem sério. É um super-herói patriota tão bidimensional quanto o Capitão América. Mas existem premissas básicas que precisam ser respeitadas. Se por um lado, a continuidade nunca foi uma grande preocupação de seus roteiristas, por outro sempre houve uma linha mestra para ser seguida. Se o Bond de Moore visitou o túmulo da esposa no início de “007 Somente Para Seus Olhos” é porque, anos antes, o Bond de Lazemby casou-se e enviuvou em “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade”. Em “007 Contra Goldneye”, a M de Judy Dench deixou claro que é a substituta do antigo M, interpretado por Bernard Lee. Nada mais natural, considerando que a chefia do MI6 é apenas mais um cargo burocrático do governo britânico. O momento em que a nova M joga na cara de Bond que ele é apenas uma relíquia da Guerra Fria não apenas rendeu um dos melhores diálogos da franquia como lembrou que 007 é um veterano, com muita história para contar.
A base dos enredos da maioria dos filmes foi retirada dos livros de Fleming: 13 romances e duas coletâneas de contos. Trata-se de literatura de segunda classe. Incomparável, por exemplo, com as obras de Graham Greene ou John Le Carré, autores respectivamente de “O Terceiro Homem” e “O Espião Que Saiu do Frio”. Não fossem suas adaptações para o cinema, o Bond literário não teria sobrevivido.
O grande responsável por sua transformação em ícone popular foi, sem dúvida, Sean Connery. Ele, com alguma ajuda do diretor Terence Young, criou a persona cinematográfica de 007: um agente cínico, sofisticado, mulherengo e implacável. “Dr. No” estabeleceu um padrão que geraria frutos. Curiosamente, Connery, até então um ator de pouca expressão, não era a escolha inicial. Fleming, que baseou a aparência de Bond no ator e cantor americano Hoagy Carmichael, sonhava com astros como James Stewart, Richard Burton, David Niven ou James Mason para interpretar sua criação. Os produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman, com os pés no chão, sondaram Roger Moore, então um popular ator de séries televisivas, como “Ivanhoé e o Santo”. Posteriormente, Moore fez um bom trabalho, mas não é Connery. Ninguém é.
Mas o fato é que o 007 de Connery não é o 007 de Fleming. O escritor imaginou um espião abnegado, altamente profissional, com traços antissociais, mas atraído pelo mundo do luxo e do jogo. De todos os atores que encarnaram Bond, apenas Dalton foi fiel à perspectiva de seu criador. Ao mesmo tempo, a partir dos elementos inicialmente estabelecidos por Connery, o 007 do cinema sempre foi reconhecível em suas variações. Lazemby tentou, sem muito sucesso, manter o tom de seu antecessor. Niven se esforçou para manter a classe em uma comédia maluca. Moore substituiu ironia por deboche. Brosnan foi uma espécie de amalgama das características de Connery e Moore.
E quanto a Daniel Craig? Qual bonde tomou Craig? Aparentemente, um coquetel de Jack Bauer, da série “24 Horas”, e Jason Bourne. Dos dois herdou os métodos ultraviolentos, o sentimentalismo e o desleixo. Existe mais de Bourne e Bauer do que de Connery no personagem interpretado por Craig. Sai o lorde, entra o hooligan. A prova definitiva dessa afirmação está em uma cena de “Cassino Royale”, onde o espião é confundido com um manobrista de estacionamento. Em hipótese alguma isso aconteceria com qualquer um de seus aristocráticos antecessores.
“Cassino Royale” procurou recontar a trajetória de James Bond, partindo do zero. Narrou suas missões iniciais, incluindo o primeiro assassinato que lhe valeu o duplo zero em seu código, sua licença para matar. Em suma, uma espécie de “Batman Begins” bondiano. Contudo, ao contrário de “Batman Begins” que estabeleceu uma narrativa coerente a partir de episódios isolados da mitologia do homem-morcego, “Cassino Royale” inventou um passado. A história pessoal de James Bond é amplamente conhecida. Existe até uma biografia autorizada do personagem, escrita por John Pearson. Em “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” ficamos sabendo que Bond descende da pequena nobreza escocesa. Órfão, estudou em Oxford na juventude e tornou-se comandante da marinha britânica. Seu histórico de missões durante a Segunda Guerra Mundial fez com que fosse recrutado pelo serviço secreto, atuando durante a Guerra Fria.
Praticamente nada disso existe mais. Sendo um personagem atemporal, é natural que Bond se adapte a cada ciclo histórico. Obviamente o Bond de Connery não viveu na mesma época que o Bond de Brosnan, um agente do mundo pós-queda do Muro de Berlim e, depois, pós-11 de setembro. Contudo, essa é a primeira vez que a adaptação significou recriação. O proto-Bond de Craig é apenas um sujeito forte, inteligente e egocêntrico que o MI6 recrutou, justamente por ele não dar muito valor à vida, sendo propenso a aceitar as mais perigosas missões. Esse Bond-bizarro mastiga de boca aberta, é incapaz de escolher um smoking, tem paladar de hiena, não difere um martini com vodca batido de um mexido, e é extremamente antiprofissional, chegando ao absurdo de invadir a residência de sua chefa, só para mostrar que é capaz de fazer. Em suma, um menino mimado, metido a rebelde. Depois ainda dizem que essa “reinvenção” prima pelo realismo. Se um agente como ele existisse no mundo real, seria rapidamente afastado. Aqui ocorre o contrário: M, novamente vivida por Judi Dench, trata Bond como se fosse uma mamãezinha preocupada com o filhinho peralta, perguntando-se se ele levou o casaquinho em sua última missão suicida. Lamentável!
Em “Cassino Royale”, a justificativa oficial para tamanho despreparo seria o fato de tratar-se de um Bond em formação. Que ele vai assumir as características clássicas ao longo dos próximos episódios. Absurdo! Que tipo de incompetente ainda está em formação próximo dos 40 anos de idade? Craig tinha 38 anos quando assumiu o papel. Nada sugere que o personagem estivesse longe dessa mesma faixa. Vale lembrar que Connery contava apenas 32 em sua estreia. Moore tinha 46, Dalton 45 e Brosnan 42. Niven, aos 58, interpretou um Bond aposentado.
O 007 de Craig não se modificou muito nos próximos filmes, não a ponto de metamorfosear-se de hooligan à lorde. Mas mesmo que isso acontecesse iria significar apenas que sua sofisticação não é natural, mas um disfarce com o qual procura se mesclar na alta sociedade. O que implica em deduzir que seu Bond não passa de um novo-rico deslumbrado. Não há saída para esse dilema da mastigação de boca aberta.
Claro que nem tudo é ruim. A abertura em preto e branco de “Cassino Royale”, mostrando os primeiros assassinatos do espião é muito boa e convincente. Até o efeito “gun barrel” fora do usual foi justificável. Da mesma forma, algumas modificações são irrelevantes, como jogarem pôquer e não bacará no cassino. Porém, é injustificável a falta de alguns dos coadjuvantes tradicionais, como o gênio inventor Q e Moneypenny, a secretária particular de M, celebrizados por Desmond Llewelyn e Lois Maxwell. Não existe justificativa para suas ausências nos primeiros episódios da saga. Judi Dench está sempre acompanhada de um cortejo, Moneypenny não apenas poderia como deveria estar ali. Só aparece no terceiro filme.
A mesma coisa vale para Q. Ele provavelmente foi o criador do celular multifuncional que Bond carrega, além do aparelho que usa para reverter um ataque cardíaco, em “Cassino Royale”. Por que não é ele o agente que ajuda o espião operar a máquina? Não ocorreu algo tão óbvio aos roteiristas? Felizmente, tiveram o bom senso de fazer com que suas participações crescessem de filme para filme, embora nem sempre de formas dramaticamente defensáveis.
Pelo menos tiveram o bom-senso de estabelecer desde o início a presença de Felix Leiter, o agente da CIA que eventualmente colabora com Bond. Como manda o figurino, 007 dirigi um Aston Martin e a arma que usa é a boa e velha walther ppk (nos livros Bond carrega uma beretta calibre 22). Também mantiveram as aberturas bregas e animadas, músicas temas feitas sob encomenda para tocar no rádio e viralizar na internet. Diante do fiasco criativo reinante, podemos ficar felizes com a inclusão desses detalhes.
Por outro lado, privaram esse estranho Bond do século 21 de uma de suas maiores características: sua obsessão por mulheres. Não que mudanças já não tivessem ocorrido, o Bond de Dalton, no auge da epidemia de AIDS, tornou-se quase monogâmico. Craig é diferente, é praticamente assexuado. Apesar de estar sempre fazendo biquinho, raramente é visto em ação. Não que não apareçam bond girls. Elas existem, mas salvo exceções são quase ignoradas. Das duas uma: trata-se de uma concessão às feministas, que sempre protestaram contra a misógina do personagem, ou o novo Bond é tão novo, tão diferente, que é um homossexual enrustido. A cena em que sai da água no melhor estilo “fortão de São Francisco”, numa citação obvia à lendária primeira aparição de Ursula Andress em “Dr. No”, não deixa de ser uma chave interpretativa. Susan Sontag observou argutamente, no ensaio “Fascinante Fascismo”, parte integrante da ótima coletânea “Sob o Signo de Saturno”, que manifestações deliberadas de hipermasculinidade quase sempre produzem a sensação de seu inverso. Não é impossível, considerando que, em uma entrevista de divulgação, Craig afirmou que mudanças são sempre bem-vindas é que já está na hora de termos um Bond gay. Será que falava dele mesmo?
Seja como for, quando o novo 007 finalmente pareceu interessar-se por uma garota, embarcou em uma paixonite adolescente no melhor estilo Romeu. Cogita abandonar a espionagem para viver às custas do trabalho de contadora de sua Julieta, Vesper Lynd. Só piora ao longo dos filmes. Em “007 Contra Spectre”, Bond de fato se aposenta para viver um grande amor. Diferentemente de “007 a Serviço Secreto de sua Majestade”, em “Sem Tempo para Morrer” essa escolha custa sua vida. Sim, Bond morre no final do filme. Não é exatamente um spoiler. Conceitualmente, esse personagem nunca foi Bond. Outros virão. Afinal, com 007 só se vive duas vezes.