A quantas humilhações uma mulher, oriental, já no ocaso da existência — e bem-sucedida — precisa se submeter a fim de se enquadrar, de não ferir as susceptibilidades alheias, incluindo-se aí as das próprias? Seria pedir muito uma velhice tranquila, sem maiores sobressaltos, assistida por quem deveria se sentir obrigada a lhe devolver um pouco da dedicação que recebera?
A exposição do servilismo da mulher asiática em “Mulheres Ocultas” (2020) se dá de maneira bastante sutil. No filme, o diretor Joseph Hsu fala da independência que a mulher foi capaz de conquistar, a duras penas, ao longo da história, ao mesmo tempo em que faz questão de evidenciar o preconceito, velado ou nem tanto, que mulheres em todo o mundo enfrentam ainda hoje, particularmente dentro da própria família.
Depois de sofrer as humilhações de um marido mulherengo e negligente, Lin Shoying consegue virar o jogo: de vendedora ambulante de rolinho primavera torna-se dona do próprio negócio. A protagonista se destaca no trabalho, ganha dinheiro, proporciona às filhas educação formal de qualidade, mas nada disso lhe dá o salvo-conduto para se dizer, verdadeiramente, livre. Trinta anos depois, seu agora ex-companheiro volta, sob a forma de um espectro incômodo, despertando nela sentimentos tão controversos quanto destrutivos. O homem está à morte, endividado, e conta apenas com os cuidados da nova mulher, que passa os dias com ele no hospital em que está internado.
Dramas de família, independentemente do contexto social em que se insiram, sempre têm o condão de transportar o público para uma realidade que ele já conhece muito bem. A história intimista, baseada na experiência do próprio diretor, aborda uma mudança de vida sui generis. Mulheres desprezadas são capazes de promover genuínas revoluções no ambiente em que habitam, levando consigo todos à sua volta — e mais intensa se mostra essa transformação se estiver em jogo a sobrevivência da prole.
A invenção e popularização de terapias como a pílula anticoncepcional, em 1960, facultou à mulher decidir quando (e com quem) ter filhos, mas não só. A percepção de que a medicina avançava em favor da emancipação feminina foi o estopim para uma metamorfose nos costumes. A mulher passou a se sentir — e a ser de fato — mais dona de si e com isso vieram a reboque progressos em outras esferas. Sem a inexorável gravidez que se sucedia ao casamento, mulheres partiram para o ataque no mercado de trabalho. Ao passo que se tornavam mais confiantes, mais desenvoltas, mais ricas, muitas até deixaram de se casar e vivenciaram a experiência do flerte sem compromisso, do sexo casual e mesmo da maternidade sem o respaldo da figura masculina. Com tudo o que isso tivesse de vantajoso e cruel.
“Tomates Verdes Fritos” (1991) é um filme de referência para a análise do processo de autonomização feminina, fenômeno vigorosamente ligado a essas questões mais íntimas da mulher. Na trama dirigida por Jon Avnet, Evelyn Couch é uma dona-de-casa que permanece num casamento infeliz, há muito apodrecido, por inércia, pela falta de vontade de reagir, e sem filhos que porventura fizessem com que não rompesse os laços com o marido por receio de prejuízo ao desenvolvimento psicossocial deles, como sói acontecer com tantos casais. Evelyn descobre uma poderosa (e improvável) aliada onde menos esperaria, o que se constitui na sua salvação. No caso de Lin Shoying, ela não tem o apoio nem das próprias filhas, que ficam a par da situação do pai, se solidarizam com ele e passam a ajudá-lo, até depois de morto. As três coagem Lin a bancar o funeral do ex-marido, o que lhe reserva surpresas desagradáveis, como receber a amante dele sem nem mesmo saber de quem se trata.
O medo insano da velhice e, sobretudo, o medo da velhice solitária, é o que impulsiona a protagonista de “Mulheres Ocultas” a se submeter aos caprichos de filhas perversas, desumanas, que não escondem uma ponta de satisfação em subjugar a mãe. A certa altura da narrativa, o cenário se desobnubila um pouco e o espectador tem a oportunidade de conhecer o que fundamenta a punição a que Lin é condenada. Suas filhas julgam-na culpada pelo afastamento do pai justamente pelo as que salvou do opróbrio e da fome. Seu temperamento forte vira seu algoz.
Lin Shoying é uma mulher que não se verga aos caprichos de quem quer que seja, mas não a ponto de prescindir do convívio de filhas que a rebaixam e na prática se mostram devotas a um pai ausente, já morto, preterindo-na. Pela primeira vez em seus 70 anos recém-completados, perpetra um deslize moral — que não prejudica ninguém, além de si mesma — e aquiesce, para ter alguma paz, em se sujeitar à vontade das três déspotas que gerara. Nas sequências finais de “Mulheres Ocultas”, se depreende que Lin ainda tem algum domínio sobre a própria vida e parte para outra. Sozinha com seus fantasmas.