Filha premeditando a morte dos pais, esposa fazendo picadinho do marido, líder religioso assediando mulheres desesperadas pela cura. Se você paga algum serviço de streaming, é absolutamente improvável que o algoritmo tenha deixado você escapar ileso das séries e filmes de true crime. Trata-se de um gênero de nome bastante autoexplicativo, mesmo para quem não foi muito além do verbo to be: a abordagem de crimes reais no Audiovisual. Na gringa, o formato está longe de ser novidade, como bem sabem os telespectadores da Sessão da Tarde nos anos 1990. Por aqui, embora sejamos um dramático expoente no número de encarcerados, muitos desses em decorrência de homicídios nomeados passionais, o sucesso do gênero é bem recente. Isso é, se desconsiderarmos o Linha Direta, programa policial responsável por colaborar na investigação de fugitivos e aterrorizar a infância de toda uma geração que se borrava de medo dos criminosos. “Bandidos na TV”, “O Caso Evandro”, “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”, “Em Nome de Deus” e “João de Deus: Cura e Crime” (os últimos sobre o suposto médium de Abadiânia) são precursores, dentro do caráter documental. Entretanto, talvez por serem ficções — claro, baseadas em fatos reais — o hype parece ficar mais na conta dos filmes lançados no dia 24 de setembro, que retratam a morte de Manfred e Marísia von Richthofen.
Números nunca falam por si, mas não podemos negar que liderar as pesquisas no Google é um bom indicador de sucesso. Estivéssemos com o caos sanitário já devidamente controlado, “A Menina que Matou os Pais” e a obra gêmea (não univitelina, por motivos óbvios), “O Menino que Matou Meus Pais”, seriam apostas certeiras para o top 5 da bilheteria nacional em 2021. Sucesso comercial do Amazon Prime Video à parte, deveríamos levantar uma problemática ética: é possível fazer com que a ampla divulgação do sofrimento pessoal tenha impacto mais digno do que o entretenimento do grande público por um punhado de horas?
Penso ser um exagero pessimista reduzir as obras à mera espetacularização. Não que deixem de ser espetáculos, não que deixem de gerar dinheiro para pessoas potencialmente descompromissadas com a causa abordada na série ou filme — e sequer estou fazendo qualquer tipo de ilação a X ou Y. Ao contrário, e sem qualquer tom polianesco, quero dizer que uma das forças do true crime, como uma espécie de tragédia grega pós-moderna, é que podemos extrair algo de universal a partir de cada caso. Não farei aqui um apanhado geral das obras mencionadas, para não ser exaustivo. Sem querer bancar uma de Aristóteles interpretando Sófocles, minha intenção é fazer uma breve e modesta reflexão sobre o gênero true crime através do homicídio promovido por Suzane von Richthofen e os irmãos Cravinhos.
Dirigido por Maurício Eça e roteirizado por Ilana Casoy e Raphael Montes, as películas partem de duas premissas bastante interessantes: a primeira é o lançamento concomitante sobre o mesmo caso, com cenas bastante parecidas, mas cada qual sob a perspectiva dos dois “principais” réus. A segunda é a ausência de ordem necessária para assisti-las. De fato, uma boa sacada. Estaria instaurada a querela, de forma ainda mais eficaz que Machado quanto à dúvida sobre a traição de Capitu, já que aqui estão as duas versões. Acontece que não foi propriamente esse o efeito. Intencionalmente ou não, o roteiro deixa escapar seu viés.
Não interessa se é documentário. Se é baseado em fatos reais. Se há a pretensão de trazer duas versões. Kant já nos ensinou que o sujeito “deforma” o objeto. Toda leitura requer um inevitável leitor. Portanto, nunca se trata da coisa em si, a menos que observemos todos os eventos, sem privilegiar uma visão, o que nem um reality show com suas dezenas de câmeras seria capaz de fazer. Ainda que as visões trabalhadas sejam sustentadas pelos autos do processo, o criador sempre está na sua criatura. Não há filme sem diretor.
Como isso ocorre com as obras de Eça, Casoy e Montes? Na versão de Daniel (“A Menina que Matou os Pais”), parece que estamos assistindo “Malhação” com doses de psicopatia, o que não tem nada a ver com o público-alvo ou a faixa etária dos personagens, “Sex Education” e “Atypical” são baita exemplos que seguem outro caminho. De forma excessivamente didática, num chavão presente na defesa do réu, Suzane teria levado Daniel para o mundo das drogas (sic). Daniel, convenientemente pamonha. Enquanto “Su” é ciumenta, explosiva, vingativa e manipuladora. Tão diabólica que isso precisa ficar óbvio até no sexo (sem pudores, me refiro à risada de vilã de conto de fadas enquanto quica no rapaz).
Até aí, você pode pensar “ué, mas isso seria óbvio, essa é a perspectiva do Daniel tentando salvar sua pele”. Acontece que a versão de Suzane tem um tom muito mais verossímil. Aspecto tão marcante na trama que as atuações de Carla Diaz e especialmente Leonardo Bittencourt são infinitamente melhores. O motivo é evidente: porque a abordagem da visão de Suzane é muito menos caricatural, o que também se traduz na maior complexidade com que Manfred e Marísia são caracterizados. Sim, há uma inversão generalizada do relato de Daniel. Contada de outra forma, Suzane era uma menina estudiosa, virgem e relutante às ofertas de maconha feitas pelo namorado. Enfim, possuía todo o pacote de boa moça anos 2000 Edition. Até mesmo a posição sexual é virada do avesso — confesso que achei um bom toque. Poderíamos pensar que a defesa jurídica de Suzane foi melhor, o que teria influenciado o roteiro. Mas talvez você tenha notado, foram menos os eventos em si que pareceram discrepantes, e mais o comportamento dominante dos personagens.
O true crime perpassa questões mais complexas, como indagar as razões do seu sucesso. Suspeito que a tentativa de compreender a ação humana, envolta em nossa natureza ou nas teias culturais, por meio da Arte, seja uma das tarefas mais antigas do Ocidente. Como nas tragédias, o gênero em questão remete à nossa perplexidade: onde falhamos enquanto sociedade para que filha e genro façam algo terrível assim? Ao mesmo passo, uma das motivações para tanta procura é a sede de justiça não realizada no cotidiano. Se os programas policialescos têm seu toque para um certo público, estamos falando de casos em que nos aproximamos de consensos, mesmo num cenário de intensa polarização ideológica. Todavia, há um impacto possível e devastador: a análise apressada de que vivemos numa distopia. Com o cenário tão recuado politicamente, a ponto de precisarmos defender obviedades como vacina e a esfericidade da Terra, o true crime pode incentivar a sanha punitivista. Pensemos: um olhar melancólico para o presente e pouco cuidadoso com a naturalização e acobertamento da violência no passado conclui que “bom era antigamente”. Não costuma dar em coisa boa.
Em vez disso, poderíamos discutir a responsabilidade social de obras que ganham tanta grana em cima de situações altamente traumáticas para os envolvidos. Afinal, quando falamos de Justiça, é raro não decair em busca por vingança. Focamos nos criminosos e ignoramos o que poderíamos fazer pelas vítimas. Penso que a Arte tenha sua autonomia e deva ser avaliada por sua dimensão estética, e por ora apenas balbucio uma possibilidade, considerando a natureza bastante específica do gênero aqui versado, mas associar o true crime a algum mecanismo de justiça restaurativa talvez seja o melhor desdobramento possível. Imagina só: além de estimular um debate imprescindível, haver repasse de verba para projetos sociais. Claro, não falo de obrigatoriedade legal. Por compromisso ético ou incentivo fiscal, não pretendo aqui trazer uma resposta definitiva. Seja como for, o debate deveria colaborar para novos olhares sobre o que é Justiça, bem como acerca da contrapartida social dessas grandes produções.
Tudo isso é algo a se pensar. Mas insisto mesmo é na questão estética: verossimilhança não é sinônimo de verdade. Compreender isso quando uma obra recebe o carimbo de baseada em fatos reais tá longe de ser fácil. Se “O Menino que Matou Meus Pais” é muito mais verossímil, há o risco enorme do público achar que Suzane falou a verdade. Ou que é mais inocente, se é que isso existe. Tudo ia bem na sua família, aquele comportamento controlador dos pais ia passar, não fosse Daniel. Não tenho dúvidas de que esse viés pode ser solo fértil para um sentimento de injustiça em descompasso com a realidade e bastante nocivo.
A Literatura nos conta que a confiança no narrador influencia sentenças, vide a afirmação generalizada de que Capitu traiu. Machado, o gênio, queria era brincar com a ingenuidade do leitor, demonstrando que toda obra tem uma visão, e a leitura acrítica, crente na neutralidade, é uma bobagem. Na ficção ou na realidade, e mesmo em sua intersecção, não há narrativa sem narrador. É preciso estar atento para o fato de que o true crime, inevitavelmente, não é tão “true” assim.