Um dos critérios para se medir a relevância de um filme é quão a história consegue se preservar fresca, atual, vívida passados alguns bons anos. “Um Sonho de Liberdade” (1994) cumpre com folga o requisito e, por essa razão, segue encantando o público.
Originalmente desprezada pelo espectador, a trama, dirigida por Frank Darabond, ingressou num rol curioso: o das produções cuja história precisou vencer o tempo para se impor, malgrado sua força. A propósito das muitas peculiaridades que cercam a realização de um filme, Darabont nunca havia estado à frente de longas-metragens até então. Estava munido, portanto, de algumas vantagens sobre os colegas, muitos acomodados com o que já havia se estabelecido em Hollywood, mas, outrossim, era alvo de sua própria inexperiência e falta de traquejo quanto a lidar com os perigos da indústria; ou seja, não tinha nada a perder. A partir do argumento extraído do conto “Primavera Eterna — Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank”, do livro “Quatro Estações” (1982), de Stephen King, vira que poderia apresentar um produto artístico que se distinguisse do que era cuspido pelos estúdios ano após ano, em especial no que respeita ao suspense. “Um Sonho de Liberdade” fala da privação de um dos direitos mais elementares do homem, mas à diferença de alguns clássicos do gênero lançados até ali, como “Alcatraz — Fuga Impossível” (1979), dirigido por Don Siegel (1912-1991), com Clint Eastwood, e “Papillon” (1973), de Franklin J. Schaffner, protagonizado por Steve McQueen (1930-1980), prefere ressaltar de que forma o condenado, embora inocente, se relaciona com sua nova condição, sua nova vida, a cadeia, o outro mundo que constrói para si mesmo, a fim de não se quebrar.
Andy Dufresne é a encarnação do supremo martírio pelo qual é capaz de passar um homem. Acusado de matar sua mulher e o amante dela, crimes que não cometeu, o ex-banqueiro chega à prisão de Shawshank duplamente avacalhado. Observam-se nas penitenciárias ao redor de todo o mundo determinados códigos, responsáveis por tornar a vida um pouco menos insuportável e, claro, permitir àqueles indivíduos o mínimo de paz de espírito a fim de não enlouquecerem. Um deles diz respeito justamente aos delitos atribuídos ao protagonista; se tivesse assumido os homicídios da companheira adúltera e do homem com quem ela conspurcara seu nome, Dufresne logo ganharia a admiração dos outros detentos. Como resolve fazer a coisa certa e não se deixar contaminar pela atmosfera de marginalidade e falsa macheza que grassa num ambiente como aquele, passa a ser alvo de perseguições, que logo degringolam em violência — sexual, inclusive. Por se manter íntegro, Dufresne traz para o seu cotidiano a vergonha da qual tentara a todo custo escapar e sua história se reveste de mais esse empecilho: lidar com a incessante perda de sua dignidade, cenário que remete à vida ela mesma, dentro ou fora das grades, quando valores como probidade, honradez, retidão não são uma alternativa. O filme passa a desenrolar um fio narrativo confessadamente filosófico.
Pensadores do vulto de São Tomás de Aquino (1225-1274) partiram da inteligente suposição de que sem honra o homem simplesmente não tem a menor possibilidade de ser feliz, uma vez que sem o caráter reto perde-se qualquer parâmetro quanto ao que seria certo ou errado na vida. Atingir a felicidade — no caso de Dufresne, a felicidade possível, isto é, o respeito de seus companheiros de desdita — sem se observar a conservação da honra se constitui um paradoxo em essência, já que pode ser tudo, consolo, sublimação, engano, menos felicidade. Mas para que exista a honradez verdadeira, há que igualmente existir quem a reconheça naquele que a reivindica. Daí a importância de Red, o cativo com o qual o ex-banqueiro desenvolve uma relação mais próxima do que se poderia entender como de amizade, dada a natureza obscura dos sentimentos numa situação extrema como o cárcere. Red, apesar de preso, continua a delinquir, contrabandeando produtos que os demais sentenciados lhe encomendavam; enfrentando seu calvário de maneira rigorosamente contrária, Dufresne e Red precisam um do outro, e os papéis se invertem: este adquire o status de mocinho — e é ele quem narra a história —, já que vira uma espécie de protetor do primeiro, enquanto Dufresne fica cada vez mais confortável no seu lugar de pária, mesmo que saiba que em circunstâncias específicas tenha de condescender e agir como preso — e um homem comum.
Tomando por fundo a hipótese do confinamento obrigatório, “Um Sonho de Liberdade” aborda de forma ao mesmo tempo sutil e precisa o caos da vida, que muitas vezes exige que o homem se alimente do que pode ter de menos nobre para aguentar a austeridade sem trégua do mundo, indiferente, torpe, cruel. Não são todos os que se submetem.