Obsceno e comovente, novo filme da Netflix é a escolha certa para quem ama comédias românticas

Obsceno e comovente, novo filme da Netflix é a escolha certa para quem ama comédias românticas

As mulheres mudaram, e com isso, também mudaram as comédias românticas sobre as mulheres. Diferentemente do que era apresentado pelo cinema até cerca de três décadas, as personagens femininas andam cada vez mais unidas. As mulheres definitivamente passaram a ocupar o centro do palco em diversas questões, antes monopolizadas pelo homem e sua infinidade de crises existenciais, inseguranças relacionadas ao desempenho no sexo, apuros de dinheiro. “Fomos Canções” (2021), da diretora espanhola Juana Macías, prova que as mulheres podem se equiparar ao sexo falsamente dito mais forte até no que ele tem de menos lisonjeiro.

“Fomos Canções” se fundamenta na história de Maca, que aos 30 anos, começa a se dar conta de que ser uma mulher independente no mundo contemporâneo vai muito além de ter a liberdade de ficar com quantos homens quiser, chegar em casa à hora que lhe der na veneta ou resolver ir dormir sem tomar banho. Espécie de coming-of-age mais suavizado e que também se espraia pela maneira idiossincrásica da protagonista encarar o mundo, o filme se desenvolve em torno de Maca e seu restrito ciclo de amigas, Adriana e Jimena, que igualmente enfrentam os tantos problemas da vida adulta. Já bem longe de ser uma adolescente ingênua e dominada pelos sonhos — a grande beleza de se ser adolescente, quiçá a única —, Maca tem de lidar com a inexorável realidade, que lhe joga na cara todo santo dia o fato de ser assistente de uma influenciadora digital (seja lá o que isso signifique) cuja personalidade apresenta traços evidentes de psicopatia, tal sua profunda incapacidade de reconhecer os méritos da funcionária e de agradecer por seu serviço. Permeando todo o calvário profissional da personagem central da trama, claro, se impõe o insucesso no amor. Todos os sujeitos que atravessam o caminho de Maca são irrelevantes, não lhe inspiram a menor confiança, mas nenhum deles se compara a Leo, o ex-namorado que parecia louco por ela, mas que não hesitou um minuto em aceitar uma bolsa de estudos em outro país e abandoná-la, lançando-na num círculo de depressão e relacionamentos tóxicos que vieram na sequência. Como não há nada tão ruim que não possa ficar pior, Leo inesperadamente volta e torna a procurá-la.

Custou muito à mulher adaptar-se ao cenário de igualdade entre os gêneros pelo qual passara décadas lutando. Ao merecidamente tomar posse do seu lugar no mercado de trabalho, a mulher foi se defrontando ainda muito imatura com discussões que talvez jamais tivesse em momento algum da vida. Se antes estava protegida de certos incômodos mesmo contornáveis — como se encontrar assoberbada de trabalho e ainda ter de dar conta da própria vida pessoal, marido e filhos — porque blindada pelo casamento e confinada ao aconchego venenoso do lar, uma vez que a mulher se reconhece mesmo capaz de encarar duas ou mais jornadas, se vê suscetível a algumas armadilhas. Em “Uma Secretária de Futuro” (1988), o diretor Mike Nichols apresenta Tess McGill, uma garota esforçada cuja única chance de subir na vida é o trabalho, que a completa. À medida que se convence de que há muito mais gente interessada em lhe puxar o tapete do que em sentir-lhe pena, Tess vai entendendo o que exatamente precisa fazer a fim de se tornar uma mulher bem-sucedida. Assim como acontece com Maca, Tess também se vê às voltas com os logros do amor, ao se apaixonar pelo namorado da chefe. Maca, da mesma forma confusa, não superara o súbito afastamento de Leo, mas agora só queria que ele sumisse de vez. 

O grande trunfo do trabalho de Macías é abordar a sororidade, a irmandade entre mulheres, propalada com mais ímpeto a partir do final da última década. Nenhuma das três amigas se julga melhor do que a outra, ainda que hajam gradações ululantes entre os problemas de cada uma. Adriana está presa a um casamento tão frágil a ponto de precisar de um terceiro elemento para se manter de pé; Jimena, por sua vez, tem uma fixação, essa, sim, doentia, mórbida, pelo ex-companheiro, morto num acidente há 11 anos, e só se permitirá amar de novo se conseguir achar alguém que se constitua um novo modelo do antigo parceiro, como se pessoas fossem carros ou programas de computador que mantivessem a essência, mas passíveis de adaptações no intuito de se atingir uma dada configuração. É claro que essa sua maneira de viver — opaca, monolítica, delirante — tem tudo para acabar mal.

Se o enredo de “Fomos Canções” pudesse ser resumido em uma só ideia, esta seria a da procura incansável, angustiada, por independência, no trabalho, no amor, na vida. Maca, a despeito de ser mulher, é uma pessoa cheia de qualidades, mas que por alguma razão se permite encasular nas memórias infelizes de seu envolvimento com Leo, que, pelo visto, estavam muito mais vivas do que ela gostaria. O que fazer delas é um problema, o que fazer dele é um problema. Ser livre tem um preço.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.