Conquistas demandam bravura. Principalmente quando não se está no comando. Os Estados Unidos nem pensavam em se tornar a potência que são hoje em 1823, pouco menos de cinquenta anos depois de sua fundação. Território ocupado por uma massa amorfa de povos — britânicos, franceses, holandeses e espanhóis — até o século 17, o que se denomina genericamente de América começou de uma maneira acanhada, só sendo reconhecida como nação à luz da história em 1783, passados sete anos da independência, a 4 de julho de 1776, graças ao Tratado de Paris. O Brasil levou apenas três anos para ser declarado oficialmente autônomo de Portugal, em 1825, mediante o Tratado de Paz e Aliança.
“O Regresso” (2015) expõe parte das chagas de um país feito de sangue, de caçadores, de mercenários, de índios, de homens infaustos que se deixavam iludir pelas promessas de algum dinheiro, mediante muito sacrifício, muita renúncia e muita humilhação. Um dos filmes que melhor disserta sobre os infortúnios dos primeiros ianques é dirigido por um mexicano — outra das tantas ironias que o cinema nos prega. Alejandro González-Iñárritu enxergou na narrativa, adaptada do romance de Michael Punke, publicado em 2002 e nunca lançado no Brasil, a possibilidade de falar dos Estados Unidos como poucos o conhecem. El Negro, como o chamam em Hollywood, conduz a trama a partir da biografia de Hugh Glass, um caçador que sobrevive à ofensiva de uma ursa parda que defendia seus filhotes, é dado como morto, abandonado, sepultado vivo, mas volta do inferno, sedento por vingança. González-Iñárritu e sua equipe se debruçaram sobre a vida muito particular de Glass por cerca de um ano, filmando em locações no Canadá e privilegiando o emprego da luz natural, um dos grandes trunfos da produção e mérito de Emmanuel Lubezki, ganhador do Oscar de Melhor Fotografia por “Gravidade” (2013), em 2014, “Birdman” (2014), em 2015, e, claro, “O Regresso”, em 2016, o único a conseguir uma estatueta na categoria por três edições consecutivas.
O western antes do western. Essa poderia ser uma definição um tanto reducionista de “O Regresso”, que proporcionou a Leonardo DiCaprio o grande papel de sua carreira, ainda não superado — pelo qual também recebeu o Oscar de Melhor Ator. González-Iñárritu, também premiado como Melhor Diretor pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, empreendeu aquela que poderia ser classificada como sua obra máxima sob a forma de um mergulho no coração (obscuro) dos Estados Unidos. Não havia o western, não havia o eldorado — uma vez que, na falta de ouro, os exploradores se conformavam com as peles, moeda de escambo com a qual se faziam todas as operações comerciais de então, entre americanos, indígenas, espanhóis e, em menor proporção, os próprios mexicanos — não havia glamour. O diretor se vale da atmosfera dos Estados Unidos como uma terra mítica para elaborar teses interessantes a respeito da origem da pujança americana, um país ainda por se conhecer, por cristalizar uma identidade, mas desde sempre atento à necessidade de estabelecer pontes comerciais, um rascunho do que viria a ser o capitalismo — primeiro o americano e, por extensão, o praticado nos quatro cantos do globo — naquilo que ele tem de melhor (livre mercado, possibilidade do indivíduo desenvolver seus talentos para ganhar dinheiro, concorrência) e de mais torpe (injustiça, exploração, escravidão de quem não se destaca o bastante).
A odisseia de El Negro sobre um homem e sua determinação em sobreviver fala ao ressentimento, que degringola em ódio e a busca por reparação. Francis Bacon (1561-1626), o primeiro grande ensaísta inglês, teve publicadas três versões de seus “Essayes or Counsels” (1597, 1612 e 1625), sendo “Of Revenge” (“sobre a vingança”, em tradução livre) o texto mais célebre. Nele, Bacon admite a vingança como uma forma selvagem de se fazer justiça, desafio de vulto à constituição de um Estado de direito. Dotado de uma das cartas magnas mais sucintas e eficazes de todas as democracias do Ocidente, baseada em sete artigos fundamentais, já a partir de 1789 — apenas 13 anos depois de declarado independente —, os Estados Unidos passam a contar com uma pálida noção do que se viria a conhecer como império da lei. Contudo, a extensão de seus domínios e sua inexperiência como povo são dificuldades de monta para se fazer dominar a razão sobre barbárie, o que se constata de maneira óbvia no personagem de Tom Hardy, o grande antagonista do filme. John Fitzgerald só assente em ficar e tomar conta de Glass, entre a vida e a morte depois do ataque da ursa, porque tem a palavra de receber 300 dólares, um bom dinheiro àquela época. Mesmo assim, logo dá sinais de que não está tão interessado em cumprir a tarefa e dirige ao moribundo uma proposta indecente. Valendo-se de um discurso extorsivo, que apela ao fato de Glass ter se tornado uma ameaça à vida dos outros dois homens que ficaram com ele a fim de assisti-lo, Fitzgerald aproveita um momento breve em que fica a sós com o ferido para lhe sugerir que consinta em dar cabo de sua vida. Como só consegue grunhir, uma vez que teve o pescoço dilacerado pelas garras da ursa, o vilão dá a Glass a alternativa de piscar se estiver de acordo com sua ideia. Numa das sequências mais perturbadoras do cinema recente, o personagem de DiCaprio hesita, mas como pressente que o outro está mesmo determinado a ir até o fim, termina por aquiescer. Num trecho tão curto de “O Regresso” há muito mais filosofia do que em toda a pregação de muitos autoproclamados filósofos contemporâneos. Glass havia concordado em ser morto, pode dizer alguém — apesar de ser forçado a reconhecer que fora, em verdade, vencido pelo cansaço; esse não é o fulcro da questão. O problema filosófico pelo qual passa se amparar o filme reside no fato de que, em Fitzgerald sendo um homem íntegro, jamais lhe passaria pela cabeça propor tal coisa, muito menos a alguém completamente destituído do pleno gozo de suas faculdades intelectuais, que não podia sequer falar. Fitzgerald é pego pelo filho bastardo de Glass que, conforme se assiste em seguida, evita a morte do pai, mas paga seu destemor com sua própria vida, da mesma forma que deveria agir o antagonista. Glass sobrevive e aí começa a segunda parte de seu calvário, até reencontrar Fitzgerald e os dois terem seu acerto de contas.
Em “O Regresso”, a natureza do homem se amalgama à natureza do mundo, cada um mostrando seu lado mais silvestre, mais indomável e mais perverso. Um filme que lembra ao público que as verdadeiras feras estão muito bem escondidas.