Grande parte da produção do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) se debruça sobre o tema da identidade e sua importância para que o homem se reconheça no mundo. Um dos pensadores mais arrojados e complexos da história, o gênio de Hegel deixou de legado à humanidade obras em que sugere a impossibilidade de compreender a natureza humana, uma vez que se cerca de conceitos os mais incongruentes entre si, quando não francamente opostos. A dialética, uma sequência de movimentos, atitudes e ideias que se contradizem em seus fundamentos, é uma constante na vida do homem; por meio de um cabedal de experiências pregressas, o ser humano torna-se capaz de decidir que caminho deve trilhar, apontando sem que seja necessária a interferência de outrem, em que medida essa nova linha de ação também pode ser-lhe ruinosa. Hegel defende que o aprendizado é inviável em condições que não fomentem a exposição de uma hipótese e sua consequente refutação, a antítese, que juntas, por sua vez, constituem a síntese acerca de dado assunto. A história mesma é feita de acertos que tomam corpo mediante erros e, analisados um e outro cenário, pode-se alcançar um prognóstico quanto ao que pode vir a acontecer num futuro imediato. No que tange à natureza particular do indivíduo numa esfera patológica, reconhecendo-se um ser único, qualquer relação com outros entes perde o sentido, circunstância a partir da qual o homem está apto a negar tudo o que lhe apresenta a dureza da realidade e criar seus próprios mundos. A essência se sobrepõe à existência da forma mais doentia que poderia encontrar, e o sujeito passa a estabelecer vínculos apenas consigo mesmo e com o que entende como sua consciência, sem se pautar pela mais pálida noção de alteridade. Para Hegel, mais que classificar as coisas e os seres como o que são, é preciso saber o que eles não são, negá-los, argumento a partir do qual se pode destituí-los de qualquer indício de normalidade e semelhança. As protagonistas de “Fuja” (2021), do indo-americano Aneesh Chaganty, e “Garota Exemplar” (2014), do aclamado David Fincher, têm muito em comum no que diz respeito a turvar a própria identidade e inventar narrativas para encobrir seus distúrbios mentais, que conduzem-nas rumo a uma espiral de mais loucura e ações delituosas. “Fuja”, “Garota Exemplar” e mais oito títulos — lançados entre 2021 e 2000, os dez na Netflix —, ressaltam, cada um a seu modo, a atmosfera sinistra do homem, valendo-se do recurso de nunca permitir ao público saber ao certo qual será o próximo lance, histórias que já se tornaram clássicos do suspense em seus mais diversos matizes.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.

O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, tragédia, caos, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se apreende das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.

Que o cinema sul-coreano vai muito bem, obrigado, ninguém pode negar. Essa tendência tem se cristalizado desde 2019 com o lançamento de “Parasita”, para o bem-estar do mercado e a felicidade do respeitável público. “A Ligação” reúne mistério, ação e uma boa pitada de elementos sobrenaturais para deixar o espectador de cabelo em pé e com a pulga atrás da orelha. Este é “o” filme para quem topa fazer algumas concessões à lógica e ficar preso no sofá.

Meio a contragosto, Ray Monroe leva a mulher, Joanne, e a filha, Peri, para os três passarem o feriado de Ação de Graças na casa dos sogros. Ray faz uma parada num posto de gasolina a fim de comprar um refrigerante, conhaque e pilhas para o brinquedo com que Peri se distrai ao longo da viagem, mas o que seria algo completamente banal, logo se converte num pesadelo. A loja de conveniência não aceita cartões de crédito e Ray compra apenas o essencial, o que não inclui as pilhas. Volta para o carro, abre a porta traseira, derrama o refrigerante no banco, e entre uma e outra imprecação, Peri salta. Num crescendo da atmosfera de total imprevisibilidade da trama, um cachorro aparece, o que apavora a menina, que vai arredando, até que Ray, tentando afastar o cão, atira uma pedra contra o animal, mas assusta ainda mais Peri, que cai de uma altura considerável e baixa ao hospital. Depois de muita burocracia, Peri é atendida, mas ela e Joanne desaparecem sem deixar rastro. Ray começa a investigar por sua conta o que poderia ter acontecido com a família, mas é acossado por circunstâncias misteriosas, até se desvendar o que existe de macabro por trás da fachada do hospital.

Em “Durante a Tormenta”, o diretor Oriol Paulo continua firme em seu propósito de submeter a narrativa às mais impensáveis reviravoltas, distorcendo a ordem natural do tempo numa história de ficção científica que se bifurca entre 1989, no dia da derrubada do Muro de Berlim, e 2014, 25 anos depois. Os dois caminhos se cruzam quando da precipitação de uma tempestade prolongada, cuja duração deve ser de três dias. A enfermeira Vera, seu marido David e a filha do casal, Gloria, se mudam para uma nova casa. Ao fazer uma faxina, Vera encontra fitas de vídeo antigas, registros feitos por Nico, um garoto que vivia ali com a mãe há muitos anos. A enfermeira faz uma busca na internet e descobre que Nico já morreu, atropelado. Por meio de uma televisão velha, Vera e Nico conseguem ver um ao outro. A fim de evitar sua morte, ela o adverte sobre seu destino, mas, ao acordar no dia seguinte, não reconhece mais sua vida: não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. A viagem no tempo é, na verdade, apenas metafórica. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma pletora de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. Ao longo do enredo, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade, nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Contratempo”, e desenvolve uma questão interessante: o homem se submete ao tempo, mas raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança.

“Um Contratempo” segue o padrão dos filmes de suspense policial espanhóis produzidos nos últimos anos: uma história com protagonistas especialmente bonitos, um anticlímax atrás do outro, locações soturnas e a dose certa de violência — neste caso, dosada até demais, o que não chega a ser algo que deponha contra o trabalho do diretor Oriol Paulo, um discípulo aplicado dos mestres Alfred Hitchcock e Brian de Palma. A premissa é simples, quase simplória: um sujeito diz ser acusado por um crime que não cometeu e procura a melhor advogada que encontra. Ela faz questão de saber toda a história, com todos os detalhes. Ao passo que ele se explica, ela o contesta — afinal, antes ela que a promotoria, ou o júri, ou, o pior, o próprio juiz. Tudo tem de sair de forma a fazê-lo parecer de fato inocente e, assim, se livrar da cadeia. O caso é que, quanto mais ele fala, mais se enrola (até porque a situação toda é mesmo um grande enrosco), mais o crime se distancia de um desfecho satisfatório para sua defesa e mais controversa se torna a advogada, sem que o espectador saiba ao certo quem desempenha que papel ali.

Depois de um grave acidente de carro, uma jovem acorda no porão de um desconhecido. O homem diz tê-la salvado de um ataque químico que arrasou todo o mundo, o que a obriga a ficar isolada com ele. A garota não acredita na história e tenta se libertar, mas isso implicaria em experimentar situação muito mais perigosa do que permanecer refém de quem a teria ajudado a escapar da morte. Cada vez mais confusa, ela tem de decidir se sua liberdade vale tamanho risco.

Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.

Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.

Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.