O que você faria se fosse miserável e um estranho te convidasse para participar de um jogo humilhante em troca de muito dinheiro? Não, não estou falando de um quadro do Luciano Huck para seu programa dominical, mas de “Round 6”, a aposta da Netflix para uma nova era. E calma, como um jornalista professor de Filosofia e adepto da calma estoica, prometo não estar “emocionado”.
Lançada no último dia 17, a série tem sido recomendada por diversos críticos e figura na lista de mais assistidas no Brasil desde então. Se a Coréia do Sul já vinha apresentando artistas do entretenimento há alguns anos, destacadamente com o sucesso de Gangnam Style, bandas de K-Pop como BTS e, em termos cinematográficos, por meio de “Parasita”, “Round 6” insere a cultura da terra natal do tigre maltês no leque de opções dos serviços de streaming.
Uma das grandes questões sobre os caminhos do século 21 reside na estimativa da China ultrapassar o PIB dos Estados Unidos na próxima década. Isso não quer dizer, entretanto, que asiáticos serão protagonistas da geopolítica num sentido mais amplo. Afinal, parte central do domínio estadunidense se deve à capacidade de estabelecer padrões comportamentais por meio da sua indústria cultural. Ainda que outros centros tenham fragilizado esse monopólio do entretenimento, com enorme destaque audiovisual para os animes japoneses, na maior parte dos casos a atenção para as obras de outros países é insuficiente para que a linguagem estética seja muito diferente da hollywoodiana.
A construção das narrativas, os apelos corporais, os planos, as trilhas, a velocidade e o ritmo das cenas em “Round 6” confirmam isso. Então, quando digo que é uma nova era, é porque a apropriação de clichês (tão sofríveis quanto infalíveis) e assimilação de um enredo que tem algo de universal e ao mesmo tempo bastante específico pode ser um portal mágico para a ampliação do consumo de produções asiáticas. Além do mais, por maior que tenha sido o êxito de “Parasita”, a ponto de levar o Oscar de melhor filme, “Round 6” tem a seu favor o potencial de desenvolver seus personagens durante muitas temporadas, o que permitiria grande apego a personagens. Há um asterisco óbvio para esse comentário, mas eu daria o maior spoiler do mundo se eu fizesse, então, em vez disso, vou te dar bons motivos para primeiro assistir à série e depois pensar “aaaah, entendi o que aquele cara quis dizer”.
Reconheço que há um ponto (peculiar) que pode fazer minha análise fracassar: o estranhamento com as interpretações mais caricaturais próprias aos asiáticos. Mas, honestamente, acho improvável. Além do hábito criar familiaridade com tudo (tem quem goste de café descafeinado, cara), a série possui virtudes muito fortes. A primeira está no campo visual. “Round 6” tem um gigantesco apelo estético: os cenários, o uniforme, as máscaras e até o cartão de ingresso para o jogo sanguinolento. Se esses elementos são pontuados desde Aristóteles, em sua célebre “Arte Poética”, quem dirá em tempos de Instagram, quando o que se busca é uma boa imagem para viralizar.
A segunda grande qualidade de “Round 6” é a capacidade de pegar um argumento semelhante ao de “Jogos Mortais” e torná-lo de fato bom. Antes de mais nada, pelos jogos propriamente ditos. Na obra sul-coreana, uma combinação improvável é arrebatadora: a carnificina que te agoniza acontece em brincadeiras infantis, o que ativa no público o sentimento de nostalgia, traço bastante em alta quando se é pessimista com o presente como hoje. O intrigante é que o saudosismo é despertado mesmo por meio de jogos que não existem no Brasil, o que também é interessante por nos apresentar esse mundo. Dentre os seis (a-há, finalmente entendeu o título da série!), o Jogo da Lula, bastante central na narrativa, cujas linhas traçadas no chão são a inspiração gráfica da logo da série — como você deve ver por aí pelos próximos anos, se a produção realmente vingar.
Claro, ainda falta algo fundamental para te convencer de vez. Como bem ensina o querido professor de Roteiro, Felipe Pena, uma história se sustenta mais em bons personagens do que numa grande trama. E “Round 6” tem um ótimo protagonista a quem se apegar. O enredo gira em torno de Seong Gi-Hun, um homem da periferia de Seul que explora as escassas finanças da mãe, ao mesmo passo que é um pai ausente e relapso. Portanto, estamos falando de uma pessoa desprezível, certo? Mais ou menos, calma. As cenas iniciais revelam que o personagem é um grande d’um trambiqueiro, é verdade, que vive de apostas e cheio de dívidas com agiotas. Acontece que ainda no primeiro episódio digamos que frestas de decência já transparecem. Seja numa gorjeta improvável para a caixa, seja no peixe compartilhado com o gato, você compreende que os “jeitinhos” do protagonista são mecanismos para superar a miséria. Aqui está, sem dúvidas, um dos pontos altos: a contestação do modelo de sucesso da Coréia do Sul. A pujança econômica do país, definitivamente, não chega para todos. E isso não é exclusividade de lá.
Seong Gi-Hun é um em meio a tantos que vivem absurdamente endividados. Diante da frustração por não poder propiciar coisas básicas para si e sua família, ao receber um convite esquisito, o protagonista aceita entrar em um jogo por muito dinheiro, mas que pode valer nada menos que a vida. Assim como ele, outras centenas de cidadãos convertidos em jogadores. Quais riscos você toparia em troca de se livrar de condições sub-humanas? Afinal, quando não há nada a perder, como diz a canção de T-ara, não há nada a temer. Ou melhor, 걱정 하지마 (saibam: deu trabalho achar isso! Hahaha).
Por trás da ambiguidade estética infantil feat. mórbida, “Round 6” é uma série sobre pobreza, ganância, justiça, solidariedade e confiança em situações-limite. Configuração essa que põe à prova os valores profundos de Seong Gi-Hun e demais personagens. Ao assistir, você não vai saber bem a razão disso tudo, mas o enigma é um dos charmes da obra.
Como de praxe, a Netflix não deve confirmar a renovação antes de três meses, então ainda devemos esperar um tempo até o veredito. Mas, desde já, sabemos que o sucesso de Round 6 (ainda em curso) pode ser um marco para a avalanche de obras asiáticas no nosso cotidiano. E que bom!
Ps.: Agradecimento especial para o queridíssimo Iago Leiria, meu amigo e ex-aluno, que hoje é professor de coreano.