Há quase três mil anos, a filosofia é a grande responsável por suprir o homem de algum esclarecimento quanto a suas tantas mortificações. Aliada a ela, a literatura — e, mais especificamente, a poesia — tentam dar cabo dos grandes incômodos existenciais do gênero humano, que parece nunca encontrar seu lugar no mundo. Publicado postumamente em 1982, “O Livro do Desassossego”, do poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1945), um dos maiores literatos em língua portuguesa da história, reúne cerca de quinhentos textos sem nenhuma lógica entre si, como se o bardo desse azo a seu próprio fluxo de pensamento, descontinuado, rebelde, caótico, sobre os mais diversos assuntos. Dividida em duas partes, a obra é assinada por dois dos heterônimos do autor. Valendo-se da identidade de Vicente Guedes, Pessoa teria se dedicado à produção que compreende os anos 1910 e 1920; Bernardo Soares, um de seus pseudônimos mais conhecidos, responde pelos escritos das fases terminais das décadas de 1920 e 1930. Por meio da prosa poética, o que se encontra ali é um diário em que Pessoa se estende sobre a presunção de cada homem, sempre tomado das mais tolas certezas quanto à superioridade sobre os demais; a falta de sentido da vida, guiada por mecanismos inexplicáveis e incompreensíveis ao alcance da natureza humana; e mormente o tormento tão íntimo do poeta frente à imanência mesma da vida, que se faz presente, queiramos ou não, estejamos ou não para ela preparados. Por mais atribulada que a vida pareça, ela tem seus muitos momentos em que o esplim, o tédio de tudo, se apossa de nós, e viver, também nessas ocasiões, é uma profissão de fé. O que pouparia mais sofrimento: reconhecermo-nos condenados para sempre a um ciclo de calmaria e borrasca, evitando dispender esforços desnecessários (e inúteis) para nos livramos da dor, ou, ao contrário, já sabendo que poderíamos ser colhidos por uma desventura qualquer, nos munirmos de toda a bravura que conseguíssemos, por mais que isso redundasse frustrado e mesmo insano? Martha Weiss, a protagonista de “Pieces of a Woman” (2020), do húngaro Kornél Mundruczó, não dispõe de nenhuma das duas alternativas, visto que só tinha uma coisa em mente: dar à luz um filho saudável, sonho de toda mulher que carrega em si uma nova semente de vida e de renovação. Em “Um Ninho para Dois” (2021), dirigido pelo americano Theodore Melfi, a perda de um filho também se impõe sobre a vida de um casal, o que provoca traumas lancinantes, mas os motiva a descobrir razões para seguirem juntos — por mais insólitas que pareçam. “Pieces of a Woman”, “Um Ninho para Dois” e mais cinco filmes — lançados ou que estrearam no Brasil em 2021, todos na Netflix —, nos fornecem aquela dose extra de alento quando a vida dá sinais de que quer sair dos trilhos.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Pelos vestígios que alguém deixa, é possível conhecer um pouco de como viveu, o que passou, que postura assumiu nos diferentes momentos de sua trajetória. “A Escavação”, do diretor Simon Stone, vai fundo nesse argumento a fim de contar a história de uma jovem viúva que passa por mais um embate pessoal depois da morte do marido. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Edith Pretty e o filho Robert continuam levando a vida como podem, apesar das vicissitudes pela perda recente. Pequenos montes de terra na propriedade em que moram, em Suffolk, na Inglaterra, lhe despertam a curiosidade e ela recorre a Basil Brown, arqueólogo amador, a fim de saber o que pode haver ali. Brown de fato descobre algo importante, tanto que a notícia se espalha e até o Museu Britânico demonstra interesse pelo que existe de misterioso no terreno de Edith. Enquanto Brown conduzia as escavações, afloravam também sentimentos, igualmente plenos de relevância. Em meio a tantas reviravoltas, Edith, mãe extremada, retém o quanto pode a devastadora melancolia que a consome devido a uma grave doença, a fim de poupar o filho, mas ao mesmo tempo, teme pelo destino do garoto. A trilha, decerto mais um dos trunfos da produção, acompanha o processo de desgaste emocional a que a viúva se entrega, bem como a ambientação da história, que acertadamente opta por cenas pontuadas pelo cinza dos dias de tempestade e uma condução mais sutil. Se a intenção do filme foi transmitir alguma lição ao espectador, Stone pode se considerar realizado. Em “A Escavação” fica claro que a vida vai muito além da superfície.

“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, dirigido e escrito por Michael Rianda e Jeff Rowe, conhecidos pela série “Gravity Falls”, usa elementos de narrativa distópica a fim de contar como seria a dominação da Terra por dispositivos de inteligência artificial. Aqui, a humanidade depende de Katie Mitchell, uma nerd aspirante a cineasta, cheia dos conflitos típicos da idade, para se safar. Além de Katie, os Mitchell contam com Rick, o pai; Linda, a mãe; o irmão Aaron; e o pug Monchi, o mascote do clã. O filme é uma história divertida centrada na garota, meio perdida como todo adolescente, mas que acredita que quando se iniciarem as aulas na faculdade, na qual acaba de ingressar, vai finalmente se encontrar — e se enquadrar — no mundo. Rick é o típico paizão, provedor, que tem por hobby consertar coisas, mas não sabe por onde começar sua tentativa de arrumar a relação com Katie, ainda que seja visível o amor que têm um pelo outro. Rick vê na viagem para levar a filha à universidade uma chance de se acertarem de vez e decide cancelar o voo que havia reservado para irem todos de carro, num vibrante road movie.

Vivo, um pequeno primata que se apresenta em números musicais por Havana, em Cuba, vê seu cotidiano virar de cabeça para baixo quando Andrés, seu dono e parceiro nos shows, recebe uma carta de Marta Sandoval, velha colega dos palcos tornada mundialmente famosa. A animação da Sony Pictures, distribuída pela Netflix, aborda o amor sob sua embalagem mais inocente: um bichinho, um velho e uma criança envolvidos na missão de fazer a resposta de Andrés chegar a Marta sob a forma de canção de amor. A vedete está prestes a se aposentar, seu último espetáculo será em Miami e Vivo terá de embarcar numa viagem cheia de reviravoltas. Para que tudo dê certo, ele conta com Gabi, uma pré-adolescente com todos os conflitos dessa fase da vida, antissocial e solitária, mas com uma aflorada paixão pela arte.

Uma mulher acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo naquele lugar. Completamente isolada do mundo, contando apenas com um dispositivo chamado MILO, para sobreviver ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que o oxigênio acabe. A história principia como um thriller de ficção científica, mas logo se mostra uma alegoria ricamente construída pelo diretor Alexandre Aja e a roteirista Christie LeBlanc de como está sendo a vida de muita gente ao longo da pandemia de covid-19, um cenário de mudanças indesejadas, incerteza, desespero e verdadeiro caos, em que nos vimos todos obrigados a repensar nossas prioridades a fim de não perder o fôlego.

Lilly e Jack acabam de passar pelo maior trauma na vida de um casal: a perda de um filho. O baque se revela muito mais intenso para Jack que, aterrado pela tristeza, passa a abusar de psicotrópicos e tem de se submeter a uma reabilitação. Lilly continua em casa, lidando sozinha com a dupla ausência enquanto planta um jardim que será cuidado pelos dois, como uma forma de terapia. Lilly que tudo seriam flores, mas estava enganada: apesar de estar no seu próprio terreno, invadira os domínios de um vizinho nada amistoso, um pássaro que começa a intimidá-la com seus rasantes, a fim de que saia dali. Aconselhada por uma funcionária da clínica onde o marido está internado, Lilly vai ao encontro de um psiquiatra que mudara de ramo e hoje dá expediente como veterinário, esperando que sua visão de mundo, tão particular e tão sensível — ainda que meio crua —, a ajude a matar dois coelhos com um só golpe.

Acostumado aos holofotes, Michael Schumacher, heptacampeão mundial de Fórmula 1, entendia muito bem o jogo em que se prestava como uma das peças mais valiosas. Schumacher, profissional até o osso, atendia todos os repórteres, não se furtava a uma ou outra provocação, a uma ou muitas grosserias, mas se mantinha impávido — e o sangue frio tão característico de sua personalidade decerto contribuiu para que chegasse tão longe numa das mais competitivas e perigosas carreiras do esporte até então. Reservado na vida pessoal, Schumi reconhecia a grandeza de colegas como o brasileiro Ayrton Senna da Silva (1960-1994), nove anos mais velho e fonte de inspiração. Schumacher e Senna eram rivais como raramente se veem hoje: titãs nas pistas, genuínos cavalheiros fora delas. Com depoimentos de personagens intrinsecamente ligados à Fórmula 1, casos do também ex-piloto londrino Damon Hill e do empresário Bernie Ecclestone, mandachuva da categoria até 2017, “Schumacher” prioriza o mito, mas não deixa de reverenciar o homem. Michael Schumacher deixou o automobilismo em 2012 e, um ano depois, sofreu um acidente durante um passeio de esqui pelos Alpes da França. Até hoje, o ex-atleta se submete a tratamento para reversão das sequelas.

É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.