Se, por um lado, as plataformas de conteúdo on demand trouxeram os filmes para dentro de casa, ao alcance de um clique, por outro, o excesso de oferta e a renovação constante da programação, fazem com que muitos filmes extraordinários passem despercebidos aos usuários. Pensando em nossos leitores, fizemos uma seleção de filmes novos, lançados nos últimos dois anos, disponíveis no catálogo da Netflix. Na seleção, apenas filmes bem avaliados pelo público e pela crítica, entre eles, a dramédia “Um Ninho para Dois” (2021), de Theodore Melfi; e os dramas “Pieces of a Woman” (2020), de Kornél Mundruczó; e “A Última Nota (2019)”, dirigido por Claude Lalonde. Os filmes estão listados de acordo com o ano de lançamento. As sinopses são de Giancarlo Galdino.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Uma mulher acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo naquele lugar. Completamente isolada do mundo, contando apenas com um dispositivo chamado MILO, para sobreviver ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que o oxigênio acabe. A história principia como um thriller de ficção científica, mas logo se mostra uma alegoria ricamente construída pelo diretor Alexandre Aja e a roteirista Christie LeBlanc de como está sendo a vida de muita gente ao longo da pandemia de covid-19, um cenário de mudanças indesejadas, incerteza, desespero e verdadeiro caos, em que nos vimos todos obrigados a repensar nossas prioridades a fim de não perder o fôlego.
Lilly e Jack acabam de passar pelo maior trauma na vida de um casal: a perda de um filho. O baque se revela muito mais intenso para Jack que, aterrado pela tristeza, passa a abusar de psicotrópicos e tem de se submeter a uma reabilitação. Lilly continua em casa, lidando sozinha com a dupla ausência, enquanto planta um jardim que será cuidado pelos dois como uma forma de terapia de casal. Lilly pensava que, a partir de então, tudo seriam flores, mas se enganara: apesar de estar no seu próprio terreno, invadira os domínios de um vizinho nada amistoso, um pássaro que começa a intimidá-la com seus rasantes, a fim de que saia dali. Aconselhada por uma funcionária da clínica onde o marido está internado, Lilly vai ao encontro de um psiquiatra que mudara de ramo e hoje dá expediente como veterinário, esperando que sua visão de mundo, tão particular e tão sensível — ainda que meio crua —, a ajude a matar dois coelhos com um só golpe.
Acostumado aos holofotes, Michael Schumacher, heptacampeão mundial de Fórmula 1, entendia muito bem o jogo em que se prestava como uma das peças mais valiosas. Schumacher, profissional até o osso, atendia todos os repórteres, não se furtava a uma ou outra provocação, a uma ou muitas grosserias, mas se mantinha impávido — e o sangue frio tão característico de sua personalidade decerto contribuiu para que chegasse tão longe numa das mais competitivas e perigosas carreiras do esporte até então. Reservado na vida pessoal, Schumi reconhecia a grandeza de colegas como o brasileiro Ayrton Senna da Silva (1960-1994), nove anos mais velho e fonte de inspiração. Schumacher e Senna eram rivais como raramente se veem hoje: titãs nas pistas, genuínos cavalheiros fora delas. Com depoimentos de personagens intrinsecamente ligados à Fórmula 1, casos do também ex-piloto londrino Damon Hill e do empresário Bernie Ecclestone, mandachuva da categoria até 2017, “Schumacher” prioriza o mito, mas não deixa de reverenciar o homem. Michael Schumacher deixou o automobilismo em 2012 e, um ano depois, sofreu um acidente durante um passeio de esqui pelos Alpes da França. Até hoje, o ex-atleta se submete a tratamento para reversão das sequelas.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
O diretor Alan Yang reconta a história do sonho americano à luz das aspirações de um jovem imigrante taiwanês procurando melhorar de vida na tão falada América. Para isso, ele deixa seu país, visando a ascender na fábrica em que trabalha e se casar com a filha do chefe, e se muda para a Nova York da década de 1970. Transcorrido meio século, tudo o que esse rapaz ambicioso e destemido consegue, porém, é um casamento desfeito, muitas amarguras ao longo da jornada no Ocidente e uma relação espinhosa com a filha.
Henry Cole é um virtuose do piano que devotou a vida à carreira. Cole nunca tivera problemas com sua natureza de verdadeira obsessão pelo trabalho, sempre em busca da performance irretocável, mas a morte da mulher o abala especialmente e ele decide interromper suas apresentações. Oscilando entre a vontade de retomar o que faz de melhor na vida e às implacáveis crises de ansiedade, o pianista conhece Helen Morrison, jornalista da revista “The New Yorker” cuja admiração rapidamente dá lugar a um afeto maior, a que Cole não pode corresponder, mas que é imprescindível quanto a retornar aos palcos e retomar sua história, ainda que nada volte a ser como antes.
Ulises não é nenhum personagem de Homero, nem faz parte de “Odisseia” alguma, mas bem que poderia. O protagonista de “Ya no Estoy Aquí” tem sua jornada própria, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descobrimento do mundo, honra, afirmação. O garoto de 17 anos, como qualquer um em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso de Ulises, o moleque é um digno representante da cultura regional, hispânico-latina, mais precisamente. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, com algumas variações de tempo. Ulises também, como um adolescente comum, anda em companhia dos amigos, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. Lá, se vira como pode, dançando no metrô a fim de defender um trocado e dorme de favor na água-furtada da garota sino-americana, também uma intrusa no mundinho abafado da América, interessada nele, mas não correspondida, porque Ulises não fala inglês, e tampouco a moça entende espanhol. O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, tudo friamente pensado, enquadramentos quase sempre muito abertos, a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos, mediante a ótica do oprimido, sem jamais se permitir concessões ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. Um herói, portanto.