Mesmo errado, o coração tem sempre razão

Mesmo errado, o coração tem sempre razão

Eis uma carta que jamais chegará ao seu destinatário. Estás blindado contra tudo o que aparenta ser razoável. Não me orgulho em escrever-te estas linhas. A frieza e a falta de empatia parecem a tua marca registrada. Registre-se nos baixios da humanidade: apesar de tudo, é horrível odiar-te. Extrais de mim o pior de que um ser humano é capaz. Tudo em ti é cansaço. O modo como tu mordes uma fatia pizza. O teu cabelo partido de lado. A tua língua presa catapultando perdigotos e injúrias. A forma jocosa como te referes aos mortos. Os acintes infames a vazar pelos cotovelos. As silhuetas abjetas dos teus comparsas cínicos-sorridentes — crápulas de toda ordem — a estampar um asqueroso ar de superioridade que, obviamente, não possuem. Em matéria de entendimento mútuo, estamos nivelados por bairro, no limite rasteiro do sarrafo humanista. Sinto-me péssimo. Já faz muito tempo que eu me sinto péssimo. Na minha opinião — que será para sempre discrepante da tua, tenho certeza — quanto pior, pior. Não me acostumo com os climas hostis criados por tua mente obtusa. Não me orgulho em ostentar uma repulsa por ti. Vige uma espécie de magnetismo errático entre as nossas divergentes visões de mundo. Os polos opostos se atraem? Não neste caso em particular. Nada em ti jamais me atraiu. Nada. Nem o pastel com garapa. Nem os galopes aloprados em caralhos-de-asas. Nem as cápsulas de terebintina. Nem o nióbio retal. Nem o cercadinho na esquina onde divertes as comitivas de ineptos com a tua verve patética injetada de flagrante descompostura. Nem a camisa-de-força com as cores da bandeira. O teu sangue jamais será vermelho, meu irmão. Há fel em excesso circulando nas tuas veias e fagulhas a incendiar os teus olhos. O resultado da ojeriza é para mim um deprimente desatino. Não sei como me esquivar de tal situação. A culpa é minha. A culpa deve ser toda minha. Já que não posso sumir, eu assumo. Se tu és eficiente em fomentar os sentimentos mais primitivos na minha mente é porque assim os permito. Eu admito: o mito sou eu. O mato sem cachorro. O reverso da Caixa de Pandora em que o mal penetra, em fluxo contrário, pela janela do meu peito. Não tem jeito. Os portões do inferno foram deixados abertos para que as maltas escapulissem. Praticas a abominável política da má-vizinhança, uma espécie de liturgia letárgica do cargo. Não me lembro de ter sentido tamanha aversão por outra pessoa como sinto por ti. Vergonha. Sinto vergonha ao admitir e ao escrever a respeito deste meu dilema. Perdi, playboy. Eu perdi o que me restava de humanismo em relação a tua pessoa, a tua caterva de malfeitores fanfarrões. A tua aura pestilenta e furibunda sufoca-me. Os teus dedos que viraram pistolas. As tuas palavras que se transmutaram em munição diuturna para ferir adversários com infâmias, a torto e à direito. A tua alma — se é que um dia possuístes alguma; quem sabe, quando fostes apenas uma criança, um guri simplório, pueril, ingênuo e franzino que sonhava um dia virar soldado para defender a nação contra os inimigos — evaporou na insana queima de livros e de árvores, e nos discursos inflamados contra a ciência e a contra a cultura. Cavas a tua sepultura ético-moral com a abominável pompa dos arrogantes. Pregas um deus que nunca existiu à tua imagem e semelhança. Nunca pensei em escrever-te uma carta, senhor. Não te preocupes. Jamais será postada. Sei muito bem que nunca fostes afeito às leituras. É vexaminoso para mim frisar o quanto te repilo enquanto um coirmão. Sei que assim pensando, sei que assim sentindo, faço o desserviço de jorrar veneno no âmago das próprias entranhas. Mas, eu precisava desabafar. De repente, ficou estranho viver nesse país. Percebo o amargo sabor da decadência, uma vontade deplorável e triste de abandonar as raízes e de cair fora. Isso não se faz: desamar a terra em que nasci. Tem algo de muito errado acontecendo com o meu coração e não o culpo por isso. Ele é apenas uma víscera convicta que bombeia e que geme, vinte e quatro horas por dia, coberta de razão, como se possuísse alma própria. Sinto muito por odiar-te. Perdão. Perdi. Eu perdi, capitão.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.