Sempre que uma criança perde sua inocência, a humanidade morre um pouco. O cinema, o gênero humano e a civilização devem muito a Vittorio De Sica (1901-1974). Filho de Umberto, bancário, e Teresa, que parou de estudar para se dedicar exclusivamente à família e aos muitos afazares do lar, De Sica sempre fora incentivado pelo pai a seguir a carreira artística. Aos 16 anos, conseguiu uma ponta em “The Clemenceau Affair”, filme mudo com enredo de aventura. A partir dos anos 1920, o futuro diretor começa a levar ele mesmo alguma fé em seu potencial, tanto que resolve integrar-se a uma companhia de teatro; cada vez mais certo de que fizera a coisa certa ao encampar sua trajetória no mundo das artes, passa a dirigir sua própria trupe, que encenava as peças escritas e dirigidas por ele, e estreladas pela primeira mulher, Giuditta Rissone (1895-1977), sem deixar a porção ator morrer, pelo contrário. De Sica estava mesmo enfeitiçado pela magia da tela; ia se tornando cada vez mais conhecido (e reconhecido) — sobretudo entre as mulheres.
De casanova a pensador do cinema, a jornada foi longa. De Sica só foi lançar seu primeiro filme como diretor, “Rosas Escarlates” em 1939, aos 38 anos. Desde então, seu desempenho por trás das câmeras se burilava cada vez mais; o cinema para De Sica era como uma amante calorosa e surpreendente, sempre com uma carta na manga a fim de deixá-lo intrigado com alguma questão no homem, elementar na obra de qualquer realizador que se preze, mas para a qual ele ainda não havia dado a atenção merecida.
“Ladrões de Bicicleta”, de 1948, traz em seu bojo uma miríade de assuntos, e, por isso mesmo, pode ser interpretado sob milhões de pontos de vista. O filme narra a história de Antonio Ricci, um desempregado que, enfim, consegue trabalho como cartazista numa Roma ainda escalavrada pelo flagelo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Antonio só fica com o bico se tiver uma bicicleta, uma vez que a pé é impossível dar conta de tantos muros, em tantas partes diferentes da cidade — e em tão pouco tempo. Ele tem a bicicleta, então, assunto resolvido; o busílis é que empenhara esse seu único bem, e que justo agora lhe faz tamanha falta, e não dispõe da quantia necessária a fim de resgatá-lo. Sua mulher, Maria, vende o enxoval da família para conseguir o dinheiro; ele corre para a loja de penhores, paga o empréstimo (e os juros) e vai, enfim, trabalhar. Mas a desdita o colhe.
O mote do chefe de família que tem de se submeter a condições degradantes para sustentar sua prole não é exatamente original na indústria cinematográfica. Com mais de 20 anos de precedência, “Metrópolis”, ficção científica lançada em 1927, e dirigida pelo austríaco Fritz Lang (1890-1976), já mostrava aonde poderia conduzir a incontrolável sanha do homem por poder, fortuna, subjugação dos mais fracos — leia-se, daqueles que não têm nada além que sua força de trabalho a oferecer —, tudo isso embalado na narrativa que melhor suscitava a ideia de marxismo que começava a se espalhar pela Europa, mais de quatro décadas depois da morte de seu propagador maior. De Sica não entra de sola no pensamento de Karl Marx (1818-1883), pela razão que já expusemos — o filme se presta a muito, muito mais que difusor vulgar da ideologia marxista; Marx o fazia muito melhor que ele. Contudo, é óbvia a intenção de De Sica quanto a fomentar a discussão acerca da natureza cada vez mais precária do mercado de trabalho, que ainda não atendia por esse nome, e da pauperização (esse, sim, um conceito genuinamente marxista) do proletariado, e tanto maior do lumpemproletariado, a escória do mundo, que por não estar apta a desempenhar nem as atividades mais reles, se dedicava ou à mendicância ou à criminalidade — e, em sendo-se mulher, também à prostituição, que igualmente tinha suas exigências muito particulares. Em 2020, a bicicleta voltou a se revestir da aura de artigo de luxo, devido à eclosão da peste de covid-19. Milhões de trabalhadores ao redor do mundo, em especial os mais jovens, alijados de suas fontes de renda compulsoriamente e sem prévio aviso — medida em essência acertada, a fim de se evitar a perpetuação do contágio —, viram na entrega de compras em domicílio uma alternativa não para suprir suas necessidades, mas para não morrer de fome. Quem foi mesmo que disse aquilo de a história se repetir duas vezes, ou sob a forma de tragédia ou como farsa?
Afora os temas que poderíamos classificar de político-ideológicos, “Ladrões de Bicicleta” tem, por óbvio, sua porção de explorador da alma humana, tão característica dos diretores europeus em geral, mas tão saborosa nos realizadores italianos. A exemplo de Federico Fellini (1920-1993) em “Amarcord” (1973), Vittorio De Sica também se vale da ingenuidade de um menino para falar da incompreensão de todos nós quanto a um mundo distante, alheio, opressor. Sai a doçura fescenina de Titta; entra a submissão filial do igualmente terno Bruno.
Antonio consegue reaver a bicicleta, parte para o trabalho e num descuido, já quase por desfalecer de exaustão, como o operário de “Metrópolis”, tem o veículo roubado. Vai atrás do criminoso, tenta alcançá-lo, mas fracassa. Começa para o protagonista uma descida ao inferno, tal como a descrita por outro italiano, Dante Alighieri (1265-1321). Levando o filho pela mão, desacoroçoado, sem saber o que fazer da vida, Antonio tem a infeliz ideia de também ele surrupiar a bicicleta de alguém. Leva seu intento a cabo, mas não goza da sorte de quem o empurrara para o mais baixo de si. É pego, toma umas boas pancadas e escapa de ser linchado por um triz. Bruno assiste a tudo, e por mais inexperiente e puro que fosse até o episódio, compreende muito bem o que se está passando.
Com um roteiro tão aparentemente singelo — coescrito por De Sica, Cesare Zavattini, Suso Cecchi D’Amico, Gerardo Guerrieri, Oreste Biancoli e Adolfo Franci —, o diretor nos joga ao rosto muitas e necessárias verdades no pouco menos de hora e meia de projeção. Um dos filmes-fetiche do neorrealismo, “Ladrões de Bicicleta” é genial na medida em que se ampara na figura de uma criança no intuito de se aprofundar sobre as questões mais essenciais da alma humana. Aqui, o menino é mesmo o pai do homem, conforme sugerira Machado de Assis (1839-1908) em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). Tem-se a impressão de que Bruno, desde a ignomínia que fora obrigado a presenciar, deixara a infância e era já homem feito, calejado pelos horrores da vida, maduro, o que se prova falso. Ao se meter no meio de uma feira onde se vendem peças de bicicleta usadas, ele desperta a atenção de um transeunte. Esse personagem inesperado percebe o encantamento de Bruno por um acessório em especial, uma campainha; se oferece para comprá-la para o garoto, e ao passo que a câmera se detém sobre ele, se conhecem suas verdadeiras intenções: trata-se de um pedófilo. Antonio o tornara vulnerável a toda sorte de perigos, uma vez que o deixara tomar parte de sua vergonha; Bruno — que não tinha amadurecido, mas começava a se aperceber da perversidade inestimável que pode conter o coração do homem —, não era capaz de sequer imaginar o que poderia realmente querer com ele o sujeito. Como se proporcionasse alguma chance de redenção para Antonio, De Sica mostra o pai de Bruno chegando na hora exata. Nem tudo estava perdido — ainda que, por circunstâncias muito pontuais, o agora ex-pregador de anúncios vá parar num bordel. Junto com o filho.
Antonio não recupera a bicicleta, Bruno não confia mais no pai e nada mais vai ser como antes. Só continuam juntos porque a pobreza os condena à seguirem num mesmo sentido, partilhando suas dores, disfarçando as mágoas que terão um do outro, até serem tragados de todo pela multidão. Pelos anos. Pela vida.