Os anos se sucedem, a humanidade faz alguns progressos, comete outros tantos deslizes, mas uma pergunta não deixa de reverberar ao longo dos anos: até onde pode ir o furor do homem por poder? O expediente de subjugar a fim de fazer valer a sua própria vontade é uma constante nas sociedades de qualquer país, independentemente da época que se deseje considerar. Tomando-se por exemplo a América Latina da primeira metade do século 21, é assustador pensar que regimes autocráticos — seja centrados na figura de um único caudilho, logo encarado com epítetos sentimentaloides como “pai da Pátria”, “pai do povo”, “comandante”, seja distribuídos por um grupo restrito e “selecionado”, composto, na maior parte das vezes, por militares — adquiriram a abominável natureza de verdadeira epidemia, nefanda, destrutiva, mortal, como só as epidemias sabem ser.
Getúlio Vargas (1882-1954) foi, provavelmente, o autocrata mais famoso e bem-sucedido da história do subcontinente. Getúlio começou sua carreira de fraudador da democracia num longínquo 1930, ao se articular com outros líderes políticos do Brasil — nada além que um feudo de dimensões pouco maiores que sua fazenda em São Borja (RS) —, e impedir que Júlio Prestes (1882-1946), presidente legitimamente eleito, fosse empossado. Getúlio foi gostando da brincadeira, foi estendendo seus tentáculos sobre a história, foi ficando. Num piscar de olhos, haviam se passados quinze anos e, em 1945, ele se retira do cenário político — nunca tendo recebido um único voto, frise-se —, para voltar em 1951, agora, sim, chancelado pela vontade soberana do eleitor, e morrer no cargo (a contragosto, é verdade), em 24 de agosto de 1954, pelas próprias mãos, antes homicidas, agora dadas ao suicídio. Júlio Prestes — como os nomes de ruas de cujos portadores ninguém nunca ouviu falar, a exemplo do Lopes Chaves (1833-1909) do poeminha jocoso de Mário de Andrade (1893-1945) —, foi tragado pela névoa do tempo e desapareceu na pirambeira da história. Getúlio tem dez estátuas em sua lembrança a cada esquina.
O, digamos, arrojo de Getúlio Vargas decerto inspirou muita gente facinorosa desse lado do mundo, abaixo e acima do Equador e de todas as colorações ideológicas. No mesmo ano em que Getúlio deu cabo da própria vida, o Paraguai passava a ser governado ditatorialmente por Alfredo Stroessner (1912-2006), responsável por suprimir de maneira direta as liberdades individuais de 20 mil cidadãos paraguaios; cinco anos depois, em Cuba, um tirano cedia lugar a outro, e Fulgencio Batista (1901-1973) era substituído por Fidel Castro (1926-2016); mais um lustro, e também o Brasil integrava a ciranda macabra das ditaduras latino-americanas, até 1985. No ano de 1973, entraram nesse rol desonroso o Chile — cujo presidente Salvador Allende (1908-1973), recém-eleito por vias democráticas, foi impelido a deixar o cargo, resolução que acatara, como o déspota gaúcho (ainda que em circunstâncias diametralmente opostas), mediante o autossacrifício —, representado pela figura sombria de Augusto Pinochet (1915-2006), e a República Oriental do Uruguai.
A sequência de gestões totalitárias no Uruguai, entre 1973 e 1985, coincide com o período em que Mauricio Rosencof, o Ruso, hoje com 88 anos, Eleutério Fernández Huidobro, o Ñato (1942-2016), e José Alberto Mujica Cordano, 86, o Pepe, permaneceram encarcerados em 47 prisões diferentes, expediente de que a repressão uruguaia se valia tanto para que prisioneiros e algozes tivessem a menor chance possível de criar algum vínculo mais forte entre si, como por causa da periculosidade dos três. O regime era duro, mas Ruso, Ñato e Pepe aguentaram firme — pau-de-arara, simulações de afogamento, choques elétricos. Nas muitas entrevistas que concedeu quando do lançamento de “A Noite de 12 Anos”, de Álvaro Brechner, Pepe Mujica, político como nunca, relembrou os muitos episódios de opróbrio a que fora sujeitado pelo Exército uruguaio enquanto esteve preso: acabara perdendo os dentes por causa das surras — e certamente a imundície em que viviam deu sua colaboração; a esse propósito, ao longo de mais de duas horas de projeção, há apenas uma sequência em é que concedido aos revoltosos direito a tomar banho, justamente quando se encontram com seus familiares pela primeira vez. Numa das passagens mais didáticas do filme — essa, sim, escatológica e, igualmente por isso, emblemática do que é a estupidez de uma ditadura —, Ñato implora ao soldado que o conduzira à latrina para que lhe solte das algemas, presas ao cano da descarga, que o impediam de se acocorar. O soldado diz que não está autorizado e chama o sargento; o sargento também não tem essa licença, e chama o tenente, que por sua vez chama outro superior. No fim, com o banheiro já cheio de autoridades, chega o comandante do regimento que, perplexo com o que encontra, brada um impropério, dá meia-volta, e os subordinados vão todos atrás, restando apenas Ñato, nas algemas — e constipado.
O tragicômico no roteiro de “A Noite de 12 Anos” é uma pequena mostra da hediondez de uma tirania em seu estado mais cru, mas Ruso, Ñato e Pepe se dedicavam a subverter a ordem muito antes da ditadura se instalar no Uruguai — e quem sabe por isso os militares lhe reservassem tantas dessas pequenas vinganças, além das realmente dolorosas, para o corpo e para o espírito. Militantes dos Tupamaros, guerrilha de orientação marxista-leninista fundada em 1963 — dez anos antes da supressão da democracia uruguaia, portanto —, eles logo se destacaram em ações criminosas, como saques de armazéns e roubos a bancos, o que lhes confere uma aura mítica, uma espécie de santidade rebeldes ou rebeldia santa, Robin Hoods modernos da periferia do globo que distribuíam o espólio de seus delitos entre os mais humildes. A saudação com chapéu alheio lhes custou mais de 4.300 dias no xadrez. Teria valido a pena?
É muito difícil se especular quanto de idealismo genuíno, malgrado ingênuo, e que parcela de frio cálculo político pode haver na conduta de um personagem como Pepe Mujica, um quarto de século depois de libertado, eleito presidente do Uruguai aos 75 anos. Nunca se provou contra o agora ex-presidente nenhuma das denúncias que a oposição lhe dirigia. Apesar de abundarem no noticiário imagens do então mandatário indo trabalhar a bordo de seu Fusca azul-celeste modelo 1987; de ele nunca ter se mudado para o Palácio de Suárez e ter permanecido na chácara em Camino el Colorado, zona rural de Montevidéu, onde sempre morou; e haver repassado 90% de seu salário para instituições filantrópicas, Mujica, segundo seus adversários — a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil entre 2003 e 2010 —, também estaria encalacrado por causa de contratos obscuros com a construtora OAS. As investigações perderam força desde que ele renunciou ao mandato de senador em 2018, aos 82 anos, queixando-se de “cansaço”. Sua mulher, Lucía Topolansky, continua no Senado.
O senso comum consagrou a máxima que reza que o poder revela a legitima natureza dos homens. Mencionando o gênio de Franz Kafka (1883-1924), citado na epígrafe de “A Noite de 12 Anos”, a política pode ser para determinadas sociedades uma mistura indigesta de “A Metamorfose” (1915) e “O Processo” (1925), em que ninguém nunca sabe com quem está lidando. Dinheiro não é tudo; política pode ser.