Há muito, muito tempo, quando Mestre Yoda ainda era jovem, caminhava eu pelas ruas de Paris, acompanhado de um amigo — as respectivas esposas ficaram na Galeria Lafayette — quando um sujeito, se bem me recordo, italiano, me abordou, oferecendo-me um blazer de marca chique. Veja bem: não me ofereceu à venda, mas sim em doação, pois disse que já havia vendido muitos e aquele havia sobrado.
Desconfiado, achando estranho, não aceitei. Ele fez cara feia, estranhou a conduta, e me perguntou por que não aceitava, já que era gratuita e, segundo disse, totalmente desinteressada a doação. Eu disse apenas que era meu direito não aceitar e, bem… vida que segue.
Isso me leva a uma reflexão sobre a imagem do brasileiro mundo afora e, mais, como é que nós mesmos nos vemos.
O gênio de Nélson Rodrigues lhe permitiu, talvez, a primeira definição canina do brasileiro, que é a do ser dotado do complexo de vira-lata. O homem teria cunhado a expressão a partir da derrota na final da Copa do Mundo de 1950, o famoso Maracanaço, donde, não sem razão, estendeu uma autoinfligida inferioridade tupiniquim não só ao campo futebolístico, mas também às atividades da vida em geral.
Segundo Hegel, o ser humano consciente deve existir por essência, sem pensar numa relação consigo mesmo. Sempre que pensa na própria imagem, o homem se objetifica. E, objetificado, se torna escravo da projeção que faz de si mesmo para os outros.
Por isso, nosso complexo de vira-lata, segundo se supõe, teria sido parcialmente curado a partir de 1958, quando a primeira vitória brasileira nas copas do mundo de futebol teria nos propiciado a primeira de várias doses de autoestima. É que, aí, nos vimos como donos do mundo, pois, como dizia a velha música (Yoda e eu temos séculos de existência), “com brasileiro, não há quem possa”.
Mas imagine que, apesar dos cinco títulos mundiais, já perdemos inúmeras copas do mundo desde então. Uma formulação apressada nos diria que o complexo de vira-lata volta a cada mundial perdido, a cada eliminação.
Ora, mas temos os mundiais e as medalhas de ouro do vôlei, o Cielo, o Isaquias, largue de ser fatalista!
Mas temos também a dengue, a desigualdade econômica, a pandemia e o Neymar.
E temos, claro, a escravidão que nos cerca com a preocupação de passar ao mundo uma imagem de povo calmo, pacífico, descolado e sem presunções de grandiosidade.
O que me leva a crer, portanto, que, sim, superamos o complexo de vira-lata, pois, além de uma nação não se resumir aos esportes, experimentamos crescimentos econômicos ao longo dos últimos trinta anos, contamos com um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo e temos uma frota automobilística grande e moderna.
Certo, não somos mais vira-latas. Só que tem um detalhe: não podemos falar alto lá fora. Precisamos ser calmos, pacíficos, descolados e humildes, pois devemos carregar eternamente a culpa pela destruição da floresta, pelo aquecimento global e, claro, pelo Neymar. E pelo Tite, não esqueçamos.
O que equivale a dizer: deixamos de ser vira-latas, mas todo mundo continua querendo passar a mão na nossa cabeça e devemos apenas aceitá-lo de bom grado. Não podemos latir, nem rosnar. Apenas abanar nossas caudas amigáveis, como tranquilos labradores: grandes, porém dóceis e bobões.
Como não sou muito fã de Hegel, e gosto de projetar a minha e a nossa imagem na parede do mundo, só posso concluir que o brasileiro superou o complexo de vira-lata, mas o substituiu pelo complexo de labrador.
Não somos inferiores, mas parece que temos que agir como se fôssemos. Voltando ao tio do começo do texto, que queria me obrigar a “ganhar” um casaco, a conversa começou (desculpem a má tradução) com: — Hei, você é brasileiro? Pelé, Ronaldo, Senna! Tenho aqui um casaco de marca que não vou usar e já terminei minhas vendas. Tome para você. Ah, não quer? Por quê, seu miserável? Onde mais você vai conseguir algo assim? Ah, seu ingrato idiota!
É claro, parafraseei muita coisa aí e exagerei na grosseria do sujeito, mas, por enquanto, vou me recusando a exercer o complexo de labrador. Se puxar a minha orelha, eu rosno, ladro e mordo.