“Them”, série de terror lançada este ano no Amazon Prime Video, acompanha a história do casal negro Henry e Lucky Emory, que decide se mudar da zona rural em que moram com as duas filhas, na Carolina do Norte, para um bairro de classe média em Los Angeles. A mudança ocorre após um grande trauma, que deixa cada membro da família perturbado de uma forma diferente. Logo de início, a série explica didaticamente que a história dessa família fictícia se origina num movimento conhecido como “A Grande Migração”, nos anos 1950, em que milhares de negros deixaram o sul dos Estados Unidos e se dirigiram para estados onde as leis de segregação racial já não eram tão radicais.
Apesar do drama que sofreram, Henry e Lucky se recusam a agir como vítimas e estão dispostos a dar uma vida tranquila para as filhas, a adolescente Ruby e a pequena Gracie. Mas a esperança de dias melhores acaba assim que eles estacionam em frente à nova casa, em East Compton, e são recebidos por um grupo de vizinhos brancos furiosos, liderados pela dona de casa Betty, que não querem negros como vizinhos.
Além da ameaça real que existe na vizinhança, os Emory começam a ser perturbados por presenças sobrenaturais. Se suas mentes já estavam fragilizadas, os primeiros dias na nova moradia acabam por deixá-los no limite entre delírio e sanidade. O pacífico Henry começa a enxergar uma entidade que o incita a revidar o racismo com violência e Lucky conhece outras mulheres negras que viveram entre brancos e tiveram destinos trágicos.
Todos eles sofrem diariamente: Henry, apesar de ser um engenheiro competente, é sempre menosprezado no trabalho. Lucky é odiada pelas vizinhas e as garotas são excluídas e ridicularizadas pelos colegas da escola. Eles anseiam pelo momento de chegar em casa, mas o terror os acompanha no único lugar que deveria ser seguro para a família.
Comecei a assistir “Them” sem nenhuma informação prévia e, pela temática racial, estética e pelo terror psicológico, imaginei que estivesse vendo algo do diretor Jordan Peele, responsável pelos filmes “Corra!” (2019) e “Us” (2019). Peele gosta de chocar, mas nada é jogado para o espectador aleatoriamente e “Them” me deu essa sensação: às vezes parecia que a série queria apenas horrorizar. A partir daí, percebi que tinha errado o palpite (ainda bem). A série foi criada por Little Marvin e produzida por Lena Waithe.
Em “Them”, o racismo acontece das formas mais cruéis possíveis. Há cenas de espancamento, mutilação, assassinato, estupro, tortura, incêndio, prisões e muitas outras atrocidades. Em uma entrevista, Little Marvin disse que as cenas de violência foram feitas para “agarrar o espectador pela jugular e o obrigar a enfrentar uma história de violência contra corpos negros neste país”.
Mas os dez episódios da série são tão violentos, que o excesso acaba encobrindo a intenção de Little Marvin. O horror explícito leva o espectador a um nível de abominação que resulta em torpor. Não há espaço para pensar sobre o racismo: todos os sentimentos se tornam um bolo no estômago, a cabeça dói, a única vontade que sobra é a de se distanciar.
Dessa forma, o racismo deixa de ser o centro da série, deixando o protagonismo para o horror. O horror é a narrativa de “Them”. E, à medida que a violência vai se repetindo, as cenas se tornam redundantes, dando a impressão de que os episódios poderiam ser bem mais curtos.
E, sim, o racismo é chocante. Como uma mulher negra, posso dizer que todas as cenas de preconceito que presenciamos ou assistimos diariamente nos noticiários são suficientes para gerar revolta. Para o espectador negro, “Them” apenas mostra novas formas pelas quais já fomos ou poderíamos ser novamente torturados.
Assistir à série foi doloroso, acho que não estou disposta a enfrentar a segunda temporada. Para os atores, também foi difícil. Deborah Ayorinde, que se destacou interpretando Lucky, disse que todos foram acompanhados por um terapeuta de plantão. “Eu tive que orar durante todo o trajeto até o set, eu precisava fazer isso”, disse ela em uma entrevista.
De positivo, podemos citar, além da atuação de Deborah Ayorinde, o trabalho de seu colega Ashley Thomas, que faz o papel de Henry. Os dois conseguem transparecer o desespero, mas também sabem olhar afetuosamente, como pais que desejam um futuro melhor para os filhos.
A ambientação também é notável. Desde a primeira cena, somos transportados para os anos 1950 nos Estados Unidos, numa atmosfera que lembra “Mad Men” (2007). Juntando esses dois aspectos à direção certeira, os primeiros minutos de “Them” fazem o espectador pensar que está começando a assistir uma verdadeira obra de arte.
A gente sabe que Hollywood está empenhado em reparar os últimos cem anos em que os negros praticamente ignorados na indústria cinematográfica. Mas a verdade é que eu nem sei se é possível essa reparação em Hollywood. E se for, séries como “Them” não ajudam muito.