Meninos grandes, cuja aparência ingênua é inversamente proporcional a seu potencial ofensivo, sempre conseguiram despertar no público sentimentos muito controversos. Ao voltar da mercearia, Léon se depara com uma garota. Trêmula, cabelo no rosto, Mathilda fuma um cigarro, enquanto se deixa flagrar pelo marmanjo, que a enxerga como a pirralha assustadiça que de fato é. Esses tipos malditos, como que perdidos no mundo, logo se reconhecem parte de uma mesma narrativa: são dois marginais, cada um lutando com as armas de que dispõem, ainda que Léon esteja em franca vantagem.
O início de “O Profissional” (1994), do francês Luc Besson, felizmente, engana. Ao sugerir o encontro fortuito de um sujeito de 31 anos com uma garota de 12 — e só isso já foi o bastante para que mentes depravadas alimentassem suas próprias fantasias imundas e tecessem toda espécie de teoria sobre o que de fato o diretor pretendia com o filme —, Besson começa seu jogo de gato e rato com o espectador, atirando petiscos que atraem a audiência para a direção oposta para a qual deveria ir, enquanto deixa seu lado manipulador tomar conta da história.
Decerto o gênio de Besson sabia muito bem que a relação — inusitada, tenha a natureza que tiver — entre Léon e Mathilda seria mesmo o grande mote de “O Profissional”, a partir do qual tomariam corpo todos os arcos dramáticos de relevância no enredo — e lida muito bem com tal evidência. Enquanto assiste à plateia se perdendo em seus devaneios, o diretor vai construindo a persona tortuosa de Léon, um assassino de aluguel que defende os interesses de um mafioso italiano radicado em Nova York. Logo igualmente se conhece a trajetória de Mathilda, cuja família acaba de ser trucidada por policiais da Narcóticos, a seção dedicada a combater o tráfico de entorpecentes. Pelo visto, a garota também não é flor que se cheire — quiçá, guardadas as proporções devidas, seja muito mais perigosa que o matador, cheio de pruridos morais para alguém que ganha a vida como ele. Meio sedutora demais para uma fedelha que mal sabe se maquiar, Mathilda acaba por persuadir Léon a se tornar uma sua discípula, tão obstinada está em honrar a morte dos parentes. A proximidade entre os dois sugere à sua falta de maturidade alguma razão para se declarar a Léon que, claro, a rechaça.
A opção de Besson por manter esse fio de dignidade em seu protagonista é o que faz de “O Profissional” um filme tão rico — e polêmico pelos motivos certos. Seria muito conveniente do ponto de vista mercadológico colocar Léon e Mathilda nus sobre a mesma cama, como Bernardo Bertolucci fez com seus personagens valendo-se de circunstâncias parecidas em “O Último Tango em Paris” (1972), por exemplo, com uma Maria Schneider pouco mais velha que a Natalie Portman que dá vida à personagem do filme de 1994, mas certamente muito mais verde. Como não poderia deixar de ser, a fita do diretor parmesão também rendeu pano para manga no que diz respeito a possíveis alusões eróticas entre uma personagem inexperiente e um homem vivido. Em “O Profissional”, esses papéis se invertem nitidamente: León é o adulto bobalhão, até meio idiotizado que, conforme já dissemos, inspira em quem assiste muito mais pena — e certo grau de identificação — que propriamente de ojeriza ou repulsa; Léon parece um garoto aprisionado numa carcaça de homem, meio larga demais, como alguém que veste uma roupa que não lhe pertence. Mathilda é o reverso da moeda; mesmo ainda uma criança, brota de seu semblante uma tristeza genuína, uma amargura doce — paradoxos até então ocultos em meio ao talento oceânico de Natalie Portman, que Luc Besson provavelmente foi o primeiro a explorar dignamente. Através dos famosos olhos de Portman, the Bambi eyes (“olhos de Bambi”, castanhos, grandes e brilhantes, como os do cervo da fábula da Disney), o público mergulha na profundidade da dor de Mathilda, a tal ponto desnorteada com a desventura lhe preparada pelo fado, que confunde piedade com desejo sexual — o que nos arremessa outra vez à controvérsia involuntária (ou nem tanto) de “O Profissional”.
Choveram críticas malcriadas ao filme, algumas às quais se deve prestar atenção. Talvez não se quisesse conferir ao papel de Natalie Portman toda a carga sexual que Mathilda acabou por capitalizar, mas o fato é que Besson criara um monstro que poderia devorá-lo. Mathilda não encarna femme fatale nenhuma, até porque não é nem femme e muito menos fatale. Ao se pretender fazer uma análise racional da personagem, se constata um traço de misoginia ao se encontrar em Mathilda a semente da mulher ardilosa, capaz de forjar a conduta de qualquer um da maneira que quiser — e tanto mais fácil se a vítima for um trintão solitário e delinquente. Não há lugar para reducionismos baratos em “O Profissional”: nem o personagem de Jean Reno — que se torna um coadjuvante de luxo à medida que o conflito em torno de Mathilda se desdobra — é tão cândido nem o tipo encarnado por Natalie Portman é esse totem da volúpia (ainda que tenha o desplante de fazer insinuações sobre a maneira que julgaria perfeita para sua iniciação sexual, ao ouvido de seu protetor). Aqui, nada é o que parece.
As quase três décadas desde a estreia de “O Profissional”, em 14 de setembro de 1994, se provaram tempo mais que suficiente para atribuir ao filme a aura de cult que ostenta. Uma história sutil demais para a visão meio curta de uns tantos, eis a verdadeira polêmica por trás de “O Profissional”.