O cinema indiano apresenta particularidades, mas tem, por óbvio, seus pontos de contato com a cultura ocidental. “Baahubali 2: The Conclusion” é um exemplo dos mais precisos a esse respeito. Desde 1913 consolidada no mercado cinematográfico, a Índia é responsável pela produção de aproximadamente 1.500 filmes todos os anos, a despeito de como esteja o andamento da economia. O público indiano é conhecido por sua fidelidade, lotando sessão após sessão a fim de não correr o risco de deixar uma boa história passar. Contando mais de 1,3 bilhão de habitantes, o país é o segundo mais populoso do mundo e o cinema — manifestação artística intrinsecamente relacionada à sua identidade nacional —, está sempre muito acima da média de espectadores por filme se comparada a outros países asiáticos e mesmo aos Estados Unidos. Estima-se que cada produção indiana desperte o interesse de, no mínimo, meio milhão de pessoas todos os meses.
Épico de ação produzido por Bollywood em 2017, “Baahubali 2: The Conclusion”, dirigido por S.S. Rajamouli, trata de valores caros aos indianos, mas valorizados por qualquer povo dito civilizado. Continuação de “Baahubali: The Beggining”, o filme narra a história de dois irmãos que rivalizam entre si a fim de ascender ao trono de Mahishmati, febre na Índia e fora dela, graças à excelência dos recursos técnicos empregados, o que confere à história o lastro de produção que não deixa nada a dever à indústria cinematográfica americana. O enredo não prima pela sofisticação (Bhallaladeva, o antagonista, o irmão mau, mata Baahubali e depois é perseguido pelo sobrinho, Mahendra Baahubali — também conhecido por Shivudu, ou Shiva —, ávido por vingar o pai), quase uma constante em Bollywood, mas até por isso, por seu caráter assumidamente despretensioso, “Baahubali 2: The Conclusion” tem muito a dizer.
A Índia nunca quis reinventar a roda do cinema, apenas adaptá-lo para a sua própria realidade, como fizeram os Estados Unidos quanto ao que se produzia na Europa no início do século 20. A partir de 15 de agosto de 1947, declarada a independência do país do domínio britânico, a produção de filmes torna-se o carro-chefe da Índia no que diz respeito a propagar a cultura hindu e absorver e metabolizar tramas estrangeiras, extraindo delas a seiva que cairia melhor à sua sociedade. A franquia “Baahubali” é um claro exemplo disso. A fim de resgatar aspectos de sua história mantidos à sombra devido à hegemonia inglesa sobre a Índia, foram sendo reeditados os contos de reis, rainhas e príncipes hindus que gozavam de pleno domínio de seus territórios, mas, por alguma razão, passaram a ter de levantar resistência se quisessem permanecer no comando. Ao longo do período conhecido como Idade do Ferro, iniciado por volta do ano 1 000 a.C., pequenos Estados e cidades-nação foram se alastrando pela região da Índia e da Caxemira, boa parte deles apresentados ao mundo com a ajuda da literatura védica. A partir de 500 a.C., quase 20 reinos e áreas que então se poderiam definir como repúblicas, ainda longe do modelo republicano conforme o sabemos em nossos dias — democrático, defensor e entusiasta das liberdades individuais —, as Mahajanapadas, tomavam toda a extensão das planícies indo-gangéticas, as banhadas pelo rio Ganges, da jurisdição hoje correspondente ao Afeganistão até Bangladesh. A utopia por um subcontinente coeso, unido, também se corporifica sob a forma da língua, expressão máxima da cultura de um povo. Se tivesse prevalecido a ideia de confederação, na Índia se falaria não o inglês, mas sânscrito, nas camadas mais ilustradas, ou prácrito, a mais difundida entre os cidadãos comuns.
A constituição de narrativa épica de “Baahubali 2: The Conclusion” igualmente remete à herança inglesa, vertida para o seu próprio desenvolvimento histórico, na medida em que exalta os feitos de um rei, que mesmo amado por seus súditos, não hesita um só instante em abdicar de todo o poder e tornar-se não monarca, mas comandante-em-chefe de Mahishmati. Ironicamente, ao longo de sua trajetória milenar — malgrado muito mais curta que a hindu, por evidente —, a dinastia do Reino Unido também se viu, por duas vezes, presa das armadilhas do amor. Em 1936, Eduardo VIII (1894-1972), tio de Elizabeth II, a atual soberana, abdicou do trono para se casar com Wallis Simpson (1896-1986); 85 anos depois, fato semelhante se dá com Harry, neto de Elizabeth II, visivelmente oprimido pela coação da família real, ainda desconfortável quanto a sua união com Meghan Markle, americana como Wallis, passados três anos do matrimônio. No caso do filme indiano, Baahubali presencia a ofensiva de Devasena, princesa de Kuntala, a um reino vizinho a Mahishmati. Apaixonado por ela, o protagonista se aproxima da soberana-guerreira findos os confrontos, sem fazer menção à sua linhagem nobre. A fama de Devasena se espalha e chega aos ouvidos de Bhallaladeva que, curioso, deseja ver um retrato da mulher que julga a mais interessante de todos os reinos da Ásia, a única merecedora de seu amor — e também se enamora dela, pedindo-a em casamento sem saber do envolvimento da princesa com seu irmão. Se o amálgama do componente de um possível romance — intrincado, obscuro, de difícil realização e fadado ao insucesso — à questão política se mostra um problema comprovadamente grave ainda hoje, tanto pior há três milênios, como “Baahubali 2: The Conclusion” deixa evidente.
Transcorrem séculos, e à proporção que o tempo passa, se mostra cada vez mais clara no homem a necessidade do sonho — ainda que às custas do poder que possa concentrar sob seus desígnios. “Baahubali 2: The Conclusion” é um cântico ao amor, mesmo quando feito na esteira de guerras indecorosas e que, no fundo, não têm a menor razão de ser. O amor pode ser a maior batalha a se apresentar na jornada do homem.